A PROMESSA

O dia amanhecera cedo, deste lado dos trópicos depois das cinco já está tudo claro. Céu sem nuvens, passarinhos cantando, gente despertando, pouco movimento. Padarias e bancas de revista sim, já estão funcionando; ônibus também passam levando os trabalhadores que se preparam para o dia começar.

Ana está na parada, espera à condução para a zona sul, vai para a casa de D. Suzete cuida do bebê desde o dia que ele nasceu. Tem que chegar até as seis e meia para fazer a mamadeira e trocar a fralda da noite. Levar para tomar sol na praia, brincar, dar comida e banho, todas essa rotina de criança pequena até as sete da noite quando ele vai dormir e ela vai embora para a parada esperar condução...

É assim, de segunda a sexta-feira, o dia todo trabalhando, voltar para casa fazer o jantar, comer e dormir. No tempo que mãe era viva, ainda ficávamos assistindo a novela e conversando, eu chegava e estava tudo pronto: sopa de feijão ou canja de galinha com pão, café e bolo. Mas há cinco anos eu estava só com Adeildo.

Meu irmão já tinha quarenta anos, nascera com um retardo mental que não tinha cura, era como uma criança, falava pouco, não dava trabalho, só aquele jeito bobo de olhar arregalado e uma falta de compreensão sobre todas as coisas. Se ele entendia o que se passava ao redor dele, eu não sei. Sua alegria era assistir televisão: via qualquer coisa, as vezes ria, nunca falava nada, horas e horas absorto em frente ao aparelho, olhando, olhando... Muitas vezes me perguntei se ele estava fingindo, ou se era feliz. O certo é que ele tinha um mundo próprio, e este, é incompreensível para os normais.

Ao lado de casa morava Adélia, minha irmã mais nova, era muito ocupada com o marido e os quatro filhos. Ainda cuidava do irmão enquanto eu estava trabalhando, além de ajudar na barraca de carne na feira. Vivia como as formigas: sempre trabalhando, sempre ocupada, correndo de um lado para o outro, comprando, vendendo, cozinhando, limpando, arrumando, sempre sem tempo, nem para conversar.

Eu vivia praticamente só, aos sábados tinha os afazeres da casa: lavar roupa, ir para a feira, limpar a casa, todos esses trabalhos sem fim. No domingo era como os dias feriados, por costume em acordar cedo todo dia, meu despertador biológico tocava sempre as cinco da manhã, ficar na cama sem sono e começar a pensar, é algo muito perigoso numa vida como a minha.

Nós éramos pequenos quando nos mudamos do interior para a capital, pai deixara a outra família lá, não sei nem quantos meio irmãos nós temos. Mãe vivia reclamando que a esposa era a outra, que ela não podia viver naquela situação, tinha que se desquitar e casar com ela, uma ladainha como pai chamava. Viveram juntos trinta anos, quando pai morreu num acidente de carro, a pensão foi para a viúva, mãe ficou só com a casa que já estava no nome dela.

Eu não sei o que é o amor, mas depois que pai se foi, mãe foi deixando de viver: pôs luto e nunca mais tirou o luto, deixou de sorrir jogando a cabeça para trás, de discutir com a novela, foi definhando até que dormiu e não acordou. Perto de morrer ela me fez prometer que eu iria cuidar do meu irmão e de mim, que eu procurasse um casamento para não ficar sozinha.

Há cinco anos mãe morreu e eu continuo na mesma vida, nenhum fato novo ou acontecimento que possa abalar a rotina. Muitos pretendentes, mas não valem nem um sorriso. A gente se acostuma com tudo, principalmente quando as coisas vão se delineando devagar: trabalhar, ajudar em casa, cuidar de mãe e o tempo passou. Meu tempo passou. As ilusões que enchem o peito são próprias da adolescência e neste tempo eu sabia o que era sonhar, agora passou.

Restaram os domingos a me cobrar os anos perdidos. A casa vazia e não ter o que fazer. Vejo crianças correndo e um marido deitado no sofá lendo jornal; o almoço por fazer, o frango assado, a coca-cola, pudim de leite e doce de goiaba. Cardápio simples guardado para fazer dos domingos dias especiais; acordar tarde, ir à igreja, cochilar na rede. Estou sozinha olhando as flores desbotadas da cortina, sinto-me inteiramente uma delas: perderam o viço, a cor, estão velhas. Posso arranca-la do trilho e comprar uma nova, dessa vez com outros desenhos, mas que farei comigo?

Pego um espelho e olho meu rosto: minha pele é branca, daquelas que ficam vermelhas por qualquer motivo; com umas veias azuladas vindo do pescoço para o queixo; a boca tem os lábios finos, o de cima é só um risquinho que eu desenho com batom; pontos pretos no nariz e os olhos de um verde bem claro. Desisto de contar as rugas: estão por todo o rosto e ao redor dos olhos. Cabelos brancos precisando de uma pintura nova e uma tristeza que me pesa mais que os anos.

Adeildo prefere a casa de minha irmã, deve ser porque lá tem mais gente, é mais animado. É um entra e sai a toda hora e para completar tem uma televisão grande, um gato e um papagaio. Essas coisas de uma vida normal: acordar, comer, trabalhar, comer e dormir novamente. As crianças gritando e correndo, brigando e brincando; sons de risada, alegria. Tudo que me falta e nesta casa é vida; eu entendo meu irmão, que mesmo sendo retardado sabe onde é melhor para ele.

Eu é que não sei de nada, acomodei-me todos esses anos, cuidando de crianças alheias, sendo testemunha de vidas que não me pertencem. Eu já nem sei que sou, soube cuidar de tudo e de todos, menos de mim. Falhei, confesso, a promessa de ser feliz eu não consegui cumprir.

CrisLima
Enviado por CrisLima em 07/09/2006
Código do texto: T234590