Voz, querida voz... Por que te vas?
Desde que me trouxeram para este hospital moderno em Londres, fico pensando em como tudo isto aconteceu. Justo comigo, uma brasileira simples, dona de casa e com poucas chances na vida: um indivíduo tão comum, tão igual, tão... Normal.
Como, hoje, não posso fazer muito além de descansar e ser observada por estudiosos da medicina, um dos meus poucos pedidos em prol do não-ócio foi este caderno, lápis 2B, borracha e apontador. Isto porque, pelo menos nas minhas memórias escritas, eu ainda me sinto... Eu mesma. Mesmo assim, estou bem, acredite. Para tentar explicar o que aconteceu com a minha pessoa – um fenômeno raríssimo – preciso voltar alguns dias no tempo.
Tudo começou há uma semana, quando eu estava no Rio de Janeiro, minha terra querida, assistindo à final do campeonato carioca entre Flamengo e Botafogo no Maracanã. Meu marido, nossos dois filhos gêmeos e eu torcíamos de modo histérico pelo Mengão, o qual, inesperadamente, perdia para o seu já conhecido freguês de tantos anos.
Em um momento de ira, insuflada pelas injustiças de um juiz sem amor aos seus laços consanguíneos, soltei um berro daqueles que faria o próprio rei dos estádios parar para me ouvir. A consequência desta atitude, somada ao barulho infernal do duelo entre as torcidas, foi uma súbita - e absurda - enxaqueca. Cada parte do meu cérebro parecia tentar sair do crânio. Era como se meus miolos tivessem zilhões de pernas e braços que chutavam e socavam cada milímetro da minha pobre cabeça.
Quando me recuperei da dor e da tontura, que duraram cerca de cinco minutos, voltei minhas atenções para o jogo e, naturalmente, para o juiz. Não pensei duas vezes: olhei para o maldito árbitro sem coração e gritei: “tu es un mierda, maricón!!!”. No mesmo segundo, meu marido fez uma cara estranha para mim. Meus dois filhos me olharam com suas faces idênticas mescladas com espanto e curiosidade. Céus, o que eu disse? Parece até que falei outra língua... Pois é. Falei.
Ao tentar conversar com as pessoas, detectei algo um tanto diferente. Passei a falar mais ou menos como aqueles brasileiros que vão jogar no Real Madrid e aprendem na marra o tal do Portunhol. A única diferença é que eu nunca havia tido contato com outra língua senão a minha original de fábrica.
O cérebro e seus mistérios... Bem, o fato resumido é que o amigo do médico que me atendeu depois do jogo conhecia um pesquisador na Europa que estuda um grupo de pessoas com sintomas parecidos com os meus (e eu achando que fonoaudiólogo era coisa de crianças que falam esquisito...). Sedento por estudar meu caso, o pesquisador britânico me trouxe para Londres, com tudo pago, para tentar me entender.
Aqui, recebi o diagnóstico: tenho a chamada Síndrome do Sotaque Estrangeiro. Parece piada, mas é sério. Neste momento, divido o quarto do hospital com uma jovem polonesa que desenvolveu sotaque indiano. Pobrezinha. Ninguém consegue, ainda, compreender o que ela diz. Pelo menos eu não estou tão incompreensível assim. E quer saber? A mim me gusta hablar español, uma nueva forma de vivir la vida. É um charme que me contento em levar. Com amor e meus niños por perto, eu posso tudo. Quando voltar para o Brasil amanhã, vou até me matricular num curso de línguas, afinal, agora eu tenho o talento.
Inspirado na seguinte notícia:
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2010/04/apos-enxaqueca-britanica-que-nunca-foi-para-china-fala-com-sotaque-chines.html