O bigode de meu pai
Não recebi amor de minha mãe. Ela era uma mulher dura e dizia o que pensava, sem titubear.
Lembro da ocasião em que resolvi participar de um concurso de poesia organizado por uma emissora de rádio da minha cidade. Devia ter uns 12 anos. Os candidatos apresentavam suas poesias no programa que era transmitido ao vivo e uma banca de jurados avaliava a produção da garotada. Fui pré-selecionado e no dia do programa lá estava eu. A banca era constituída por três jurados e, como é de praxe nesses concursos – só que eu naquela época não sabia disso – dois dos juízes elogiavam enquanto que o terceiro destruía tudo o que os outros haviam dito: a conhecida estratégia “dois mocinhos e um bandido” que garantia a cota de emoções para os ouvintes.
Bom, aconteceu comigo. Depois de alguns elogios dos “mocinhos”, foi a vez do “bandido”. O cara disse tanta merda, mas tanta, que eu queria sumir; saí dali tonto, sem rumo. O auditório da pequena emissora ficava a alguns quarteirões de minha casa e não sei como consegui voltar sozinho. Minha precoce vocação literária acabava de ser enterrada naquele funesto concurso.
Cheguei em casa e fui direto para meu quarto; lá fiquei, horas intermináveis de absoluta incompreensão sobre o que havia ocorrido. Até então, eu achava que escrevia direitinho; era elogiado na escola, os professores me incentivavam quando eu apresentava as redações e até mesmo meus pequenos poemas. Tinham me convencido de que eu sabia fazer algo de razoável valor; foi por isso que me aventurei na empreitada daquele maldito concurso. Minha ingenuidade infantil não contava com a desgraça que se abateria sobre meu incerto talento, dando fim prematuro ao meu percurso literário. Pois foi o que aconteceu ali naquele auditório, diante de todos que puderam testemunhar o sepultamento de minhas pretensões infantis de ser um poeta.
Passei um dia sem comer trancado no quarto. Parecia que somente a mim a desgraça havia atingido; toda a vida fora daquele quarto continuava como se a ordem do universo não tivesse se alterado com o desastre que acometera minha vida. Ao final do dia seguinte, vencido pela fome, saí do meu vergonhoso refúgio, sem coragem de enfrentar a vida e o mundo hostil com o qual havia me deparado de maneira tão abrupta e brutal.
Chorando, aproximei-me de minha mãe. Ela segurou-me pelos ombros, olhou no fundo dos meus olhos, sacudiu-me várias vezes e disse: “Deixa de ser molenga, menino! Vamos, reage...”. Fui novamente surpreendido, desta vez por uma trombada – parecida com aquelas que eu criava para minhas miniaturas de automóveis – com uma verdade que me pareceu insofismável: a exigência de ser forte, de não me render às vicissitudes da vida. Com aqueles chaqualhões, dei-me conta de que a vida não é para molenga, filhinho da mamãe que chora porque não gostam de sua poesia. Foi assim, de súbito, e de uma só vez, que aprendi que o segredo era descobrir em que é que eu era bom, desfazendo-me das ilusões e das tentativas de ser o que eu ainda não sabia se poderia ser. A partir de então, andaria com cautela e apenas pelos caminhos dos quais tivesse certeza de conhecer as paisagens. Mamãe era assim: dura, incontornável, e não dava guarida a fraquezas de um menino fraco.
O amor que não tive de minha mãe recebi de meu pai. Ah! Que homem gentil! A lembrança mais doce que guardo comigo é a do roçar de seu bigode em minha barriga. Ele chegava – eu, deitado na cama ¬–, fazia cara de monstro aterrador, do jeito que as crianças temem mas tanto gostam, e que eu sabia ser pura dramaturgia, avançava sobre mim, levantava minha camiseta, fazia “bruuuu” com a boca em minha barriga e, balançando a cabeça, esfregava seu bigode em minha pele. Essa brincadeira que, para meu deleite, se repetia com frequência, era a demonstração cabal do seu amor por mim: pura poesia, aquela que eu já sabia ser incapaz de criar mas que tinha ali, generosa e graciosamente oferecida por meu querido pai.
Pois é, meu pai era assim... Acho que naquela época comecei a entender porque ele não era feliz com minha mãe.