A morte do escritor
Soube naquela noite, a notícia vinda do Jornal Nacional que ele acompanha religiosamente com o pai. Do escritor sabia apenas que era um “grande homem das letras”, como explicou o pai; de proximidade entre ele e o venerando senhor, o fato do pai chamá-lo carinhosamente de “menino das letras”, dado o interesse que o garoto sempre manifestou pelas palavras.
A intuição do menino lhe dizia que essa morte não era uma qualquer , mas a de um homem que, em algum momento luminoso de sua vida, fora tocado, como ele próprio, pela magia fulgurante da enunciação. Andrezinho sentiu que morrera alguém de sua estirpe, de sua família espiritual, um senhor que tinha estranhamente algo de amargo em seu nome.
O menino conhece a palavra “estirpe”. Descobriu-a lendo um comentário sobre o filme Robin Hood no caderno de cultura do jornal que o pai assina e compartilha com o filho, antes mesmo de assistir a película em 3-D no cinema do bairro. No jornal, o crítico dizia que o filme era sobre a saga – outra palavra que Andrezinho aprendeu naquela leitura – de alguém inconformado com as injustiças, e que esse bravo homem fazia parte da estirpe dos heróis. A palavra ecoou na mente do menino das letras, que a subvocalizou, como costumava fazer com toda palavra nova que descobria, para poder ouvi-la pela primeira vez: estirpe , murmurou. Uma palavra grandiosa, tal como deve ter sido o herói cujo filme iria assistir. O menino gugleou à procura da palavra inédita e encontrou: origem, descendência, linhagem, raça, casta.
Pois então. O senhor português, morto de velho, aos 88 anos, era de sua estirpe, raça dos homens que gostam das palavras. Devia de ser muito sabedor de tudo que dissesse respeito à língua portuguesa, porque seu pai havia dito que o escritor amava a língua-pátria, era português e porisso mesmo falava daquele jeito estranho que mais parecia uma brincadeira da lingua do p. Aproveitando um dos sinônimos garimpados no google, o menino pensou que ele, Andrezinho das Letras, poderia ser um descendente, meio que distante, talvez um arquineto do velho escritor amargo, e o parentesco adivinhado causou-lhe uma súbita emoção. Estariam ligados, mais do que por laços distantes de consanguinidade, por um amor embriagado pelos substantivos, adjetivos, verbos, preposições e tudo o mais que compartilhavam por serem filhos da mesma língua-mãe? Suspeitou que deveriam possuir a mesma sintaxe e semântica do ser. Tudo isso Andrezinho pensou mas, é claro, não ainda com essas palavras, que algumas delas ele somente virá a conhecer no futuro, após outras tantas investidas ao google.
No dia seguinte, os jornais noticiaram amplamente o desaparecimento do escritor. Andrezinho pediu ao pai que selecionasse as matérias que falavam sobre o seu conterrâneo, pois assim Andrezinho se sentia, filho que era da mesma terra do senhor amargo. Leu tudo o que lhe caiu às mãos: detalhes biográficos, relação das inúmeras obras publicadas, comentários de pessoas que viveram ao lado do ilustre autor, suas últimas palavras. Chamou-lhe a atenção uma coluna que tinha um nome que ele ainda não conhecia, o que, na verdade, não era um grande problema mas, antes, um estimulante desafio, para o pequeno menino das letras: nada que uma rápida consulta à internet, ou uma mais sofisticada consulta ao dicionário de língua portuguesa que seu pai mantinha disponível sobre a mesa da biblioteca, não resolvesse. Percebeu que o jeito de quem escrevia nessa coluna, enaltecendo a figura do escritor morto – quem sabe alguém que também fazia parte da estranha família – tinha uma grande proximidade com seus próprios sentimentos. Começou a tramar que desejaria fazer algo semelhante e expressar a gratidão pela descoberta do notável ancestral agora morto. Continuou a ler avidamente os diversos artigos que encontrou no jornal.
Naquele dia à tarde, lá vai Andrezinho para a escola. Aula de redação que, como sabemos, é a matéria mais apreciada pelo menino das letras. Dona Cora inicia a aula referindo-se, é claro, ao desaparecimento do velho escritor, fala um pouco sobre sua vida, cita alguns de seus romances publicados, isso porque nem todas as crianças já ouviram falar daquele senhor, e pede que as crianças escrevam um pequeno texto a respeito. Andrezinho excita-se com a ideia de poder falar bem do velho senhor amargo, utilizando suas recentes descobertas linguísticas, e escreve rapidamente sobre a folha do caderno: Necrológio de José Saramago, por André Junqueira Alves, também conhecido como Andrezinho das Letras.