Precipitado
Na esquina mesma da rua tua, aquela onde vive desde sempre, mais do que paisagem urbana, poluição visual e inconveniente, a derrota amiga. O da espécie que não deu resultados, um tipo impuro, bastardo, com todas as credenciais pra ser rebelde e, no entanto, samambaia de sinal, um bibelô de porta de supermercado, assunto de turista, material de fotografia, banho, polícia. Depois, a velha calmaria.
As coisas continuam as mesmas por aqui, perto do Palio vermelho quebrado, o terceiro carro da rua, de quem vem da Voluntários. Ainda, compro meus sonhos na padaria e vendo poemas por qualquer migalha, conto para o bom senso, com o melhor dos humores, as crônicas que vivo nos acostamentos, embaixo das pontes e no meio dos carros, que é onde ficam os gatos escaldados com as luzes do asfalto.
Quando me falta o ar, tenho os líquidos criados pelo homem pra me dissolver, trazer o caos pra reorganizar os totens, rever as questões universais, subir correndo as escadas em espiral até que não há mais nada, o vazio, um passo no espaço e a queda feito gota sobre o que consome por dentro; e latejar, feito martelo que cobre o prego de teimosia, já que sem esforço este some no abraço da parede. Uma ferida pode fazer desta rachadura o câncer temido das fundações, o eixo dramático sobre o qual se desdobraria uma desventura a mais.
Mas foi você que caiu, teu corpo é que dorme sem vida. Afasto um cão dos teus olhos, vejo que não tem palpitações, tuas pupilas estão como as de uma boneca de menina. Quero teu nome, teus cartões de crédito, quero tua casa e tua mulher. Fui eu quem encontrou o corpo, que velou teus despojos, nem deixou que um cão faminto viesse jantar os contentos do teu rosto. Quero teu filho, teu carro novo e o destino, brilhante, correto, por onde se desliza macio no dia após dia, como deve ser, conseqüência de esforço nenhum, exatamente como foi pra ti. E por que não? Por que este lugar vago a entreter ninguém? Que alguém se regozija com tamanho descaso? Posso estar aos pés do fracasso, mas em teu lugar, na tua vida, como eu não triunfaria? A pele macia da tua mulher, o café da manhã antes da labuta, o terno, um carro e uma pasta pra guardar os papéis, contratos, um óculos escuros pra cruzar a lida, cabelo no jeito. Voltar pra casa e na coxa da tua esposa salivar de fadiga até a exaustão.
Quê? E ta vivo? Levanta com cuidado. Diz que isso acontece de vez em quando, que está andando, ou mesmo sentado, não faz muita diferença, cai de lado, um sono que o abate sem dizer porquê, quando, nada. Fez exames e vai buscar na próxima quinta, os resultados estão mexendo com seus nervos, todos em frangalhos. Estende uma nota pro meu recuso. Diz que é besteira e me digo saciado, pode sair homem, sai, toma teu rumo, vai pro outro lado do mundo. Ele sai sem entender que minha vitória era pequena, uma cápsula embaixo da língua que só poderia engolir depois que sumisse do quadro. Aquela sensação colhida nas veias maduras de seu corpo quase morto, o gosto descendo direto pelo gargalo, um gole farto do precipitado de fundo, massa gordurosa com a qual me confundo antes de fugir.