O Túmulo
Esquecera-me por completo daquela velha caixa de Quality Street que amofinava o fundo de uma gaveta da cómoda do meu antigo quarto. Cada vez que ia de férias a casa dos meus pais, no Alto do Seixalinho, acabava sempre por remexer nas minhas velharias. Nessa caixa guardava eu reminiscências dos meus tempos de banco de escola. Fotografias, cartas, bilhetinhos que o tempo amarrotou, fitinhas coloridas da Nossa Senhora do Bomfim compradas na loja dos Porfírios, ainda, com desejos por realizar (muitos já caducados...), postais do parque de campismo de Ferragudo, enviados pelo esgrouviado Rui Eanes, e uns poemas que o José Carvalhal me tinha ofertado. José Carvalhal... por onde andaria o poeta que no 9° ano, de ar solitário e perfil aquilino, puía os bancos da escola de Santo André?
Éramos um pequeno grupo de sonhadores dos anos oitenta. Belmira, de longos cabelos castanhos, sonhava em ser um Karl Marx de saias e, não raro, roçava as paredes dos corredores da escola evitando, aqui e ali, estudantes, professores e contínuos, enquanto lia alto e a bom som algumas passagens de Ricardo de quem Marx tinha sido discípulo; Carminda, uma moçoila um tanto roliça, de riso escancarado, tinha somente uma preocupação na vida: casar com um homem rico. Nem paciência teve para esperar que Peixoto iniciasse os seus estudos de advogacia, para aceitar o pedido de namoro que bailava nos olhos castanhos do rapaz, mas que nunca chegara a pular para fora dos seus lábios carnudos. Pobre Peixoto! Um mar de confidências deitou ele nos ombros fraternos do José Carvalhal, na esperança que este último lhe rabiscasse um soneto para ofertar à sua amada. Mas qual! Carvalhal não escrevia poemas por encomenda. Era preciso ter uma musa, um amor pungente; a inspiração não se encomendava assim do dia para a noite, e ele, Carvalhal, era um poeta como há muito não se via por terras portuguesas e arredores, ripostava sempre ao desesperado Peixoto, que via o seu amor não correspondido, esmorecer pelos bailinhos das festas populares, quando a sua Carminda, saía, catita, a dançar nos braços de algum mocetão de ares faustos.
Quase que me esquecia da Deolinda, que estudava para ser mulher, mãe, dona de casa e confidente do seu futuro marido, quando este chegasse a casa com uma pasta cheia de preocupações por culpa da escassa admiração que lhe outorgavam. Doce Deolinda dos olhos pardos que tanto suspirava pelo bravo poeta.
O seguinte ano escolar era o ano das escolhas. Cada um seguiria o seu rumo, consoante as suas ambições. Enquanto isso, costumávamos trabalhar em grupo cada vez que o professor de Português, João, João Qualquer Coisa porque o seu apelido, agora, não me vem em mente, nos pedia uma explanação sobre algum livro que tínhamos que ler. Quando era a vez de nos reunirmos em casa do Carvalhal, Carminda era a primeira a se opor. O quê? Nem pensem que eu vou para a casa dele, lá em frente do cemitério do Lavradio. Deolinda, soltava um risinho nervoso e contestava, com razão, que era dos vivos que deveríamos ter receio, e, nunca, dos mortos. Nesse ano, o trabalho a ser apresentado era sobre Camões e os seus sonetos. Carvalhal não cabia em si de contente. Ó pessoal, a nota máxima já está no papo, garantia ele, alvitrando que um dos seus perfeitos e melódicos sonetos, bastaria a destronar o grande mestre e arrecadar um “Excelente trabalho”. E começava a declamar: Perdi-me nas colinas do teu seio, última moradia do meu olhar. Ah! levaste nos lábios o cantar e a saudade do beijo que eu anseio. E antes que começasse uma outra estrofe, ao som de ais deolindescos, José Carvalhal, de peito inchado, nem se apercebia que o grupo, aos poucos, se dissipava. Voltava, então, aos bancos de pedra, puídos pelas horas sentadas, declamando, de costas voltadas para o Tejo, os seus versos mais sentidos!
Pelo trabalho, tivemos um suficiente. Nem um “Muito Bom”, nem um “Excelente!” e menos ainda um “Com Distinção”. Um mero suficiente! Carvalhal esbravejou, tratou o professor João Qualquer Coisa, de ignorante, velho entorpecido pelas letras apáticas e sem eco. As minhas, gritava ele enfurecido, têm muito que se lhes diga e não será o senhor que me vai ensinar a escrever poemas. E ria, descontroladamente, enquanto seguia com o seu discurso e acusava o professor de não saber escrever, que dos seus dedos de lente, amarelados pelo fumo do cigarro, só saíam escarros de poesia e nada mais. Leia! Leia! - continuava ele, ao mesmo tempo que agitava as folhas com o nosso trabalho diante dos olhos impávidos e serenos do Sr. João - e ao lê-los o único que lhe restará é curvar-se diante da magnificência dos meus versos, e os aplausos, que decerto me ofertará, serão insignificantes, confrontados com os que terei de quem sabe o que é poesia.
Alguns anos se passaram desde esse episódio, quando ao ler um suplemento do Diário de Notícias, o DNJ, vi um soneto assinado por um José Carvalhal. Tínhamos perdido o contacto. Eu prossegui os meus estudos na Alfredo da Silva, e ele, acho, mudou-se para a casa dos avós em Linda-a-Velha. Pensei que só podia ser o José Carvalhal que eu conhecera na escola de Santo André, o gentil Carvalhal, enfezadinho, de óculos finos, escaparate de uns olhinhos de petinga, e, sempre, com aquele porte fino de pelintra. Soubera, também, que ele convencera o Miguel Cavaco a declamar uns poemas na rádio estudantil da cidade. Uma única vez bastou para que o Cavaco tirasse do ar o programa EducArte.
Estávamos em 98, quando Lisboa me recebeu com todas as pompas e glórias. Não porque a chegada da sua filha fosse um evento, mas por outro que ficou na história do país. Levava eu na minha mala, além dos meus pertences estivais, uma melancolia inexplicável. Nesse ano, contrariamente aos anteriores, não fiquei na casa do Alto do Seixalinho. Fomos para a casa da Quinta da Marquesa, onde o calor é menos abrasador, e os eucaliptos inundam as casas de um perfume encantador. Depois de uma semana, decidi procurar os meus antigos colegas de escola. Anos e anos passaram-se e as notícias que me chegavam aos Alpes, de quando em quando, era da Deolinda. Sabia que tinha casado e tivera dois rapazolas. Casara-se com o Nando, um surfista playboy da Caparica. Dirigi-me à sua antiga casa, no Bloco D, uma transversal da Pacheco Nobre, e quem me abriu a porta foi a D. Henriqueta. Ficou contente em me ver e depois de dois dedos de prosa, saí em direcção à casa da Deolinda com o seu endereço no bolso.
As últimas notícias eram que ele tinha andado pela Europa, de escola em escola, a estudar literatura. Em todas se inscrevia, mas nunca terminava o ano. Nenhuma delas era suficientemente apta ao seu saber, à sua sede. Tudo o que lhe ofereciam ele já conhecia, quando, ainda de cueiros, engatinhava pelas veredas da escrita. Depois, rumou para Espanha onde trabalhou num jornaleco de Dénia, foi apresentador do programa de televisão Soupe à la Culture, na França, até ao dia em que, em directo, criticou violentamente, o excelso trabalho do escritor e critico françês Monsieur Ph. S.; voltou a Portugal onde criou, às suas custas, a revista mensal P’la Estrada da Poesia, que durou seis meses; enveredou pelas sendas da música, também sem sucesso. Um caminho por demais pedregoso, cheio de altos e baixos. Mais baixos que altos. Carvalhal, continuava Deolinda, nunca aceitou o fracasso dos seus poemas, e o mudo som dos aplausos que ficava nas algibeiras esfrangalhadas dos intelectuais da Brasileira, levaram-no às portas da sandice. O meu semblante entristeceu-se. Desdobrei aquelas folhas amareladas que continham alguns versos do José Carvalhal; reli-os e, não sendo uns versos primorosos, vi naquelas trémulas letras, o afã desejo de vir a ser um poeta consagrado. Não o tinha sido até então. Não por falta de capacidade, mas por falta de humildade! Perguntei se ele voltara à casa do Lavradio. Deolinda fez uma pausa. De os olhos presos no soalho de madeira, disse: - Disseram-me que vive em frente...
O pequeno prédio branco de três andares já não existia. Procurei por um que se situasse em frente daquele que fora, agora, trocado por um barulhento Pub. Nada! Cinco badaladas tiraram-me do meu estupor. Vive em frente, foi o que ela me tinha dito!... Entrei, e comecei a procurar nas lúgubres alamedas, pelo Carvalhal. Não tive que muito procurar. Ali, estava o retrato baço do morto que o túmulo da vaidade engolira. Queria ter podido aplaudi-lo, ao menos pelo seu hercúleo esforço. Já não era necessário. Os ciprestes curvavam-se agora, diante dos seus versos espalhados pelas areias húmidas e esbranquiçadas pela cal que carcomeu as tripas esfomeadas de méritos louváveis... ou injustificáveis.
Cristina Pires
Julho de 2004