A guardiã das lembranças.

Hilda, mulher forte e rija ainda aos setenta anos, tem o olhar brilhante e cheio de expectativa. Contém as lágrimas de emoção e alegria.

Naquela manhã outonal, o sol brilha sobre os campos de sua Itália amada.

Eis que o carro aproxima-se de uma casa antiga e grande, cercada por campos verdejantes, e pelas belas árvores centenárias que deitam sombra abundante aos habitantes do lugar.

Desce do carro ligeira, seguida do filho relutante e mal humorado.

Roger achara um absurdo o pedido da mãe naquela altura da vida...

Hilda insistira em voltar a casa onde passara a infância e adolescência, e de onde saíra apenas para casar com Henrique, o marido brasileiro que conhecera durante um passeio pela cidade.

Agora, viúva, as saudades doíam na alma sofrida, impedindo até a paz de espírito longamente conquistada. Tinha que rever sua terra, sua gente, antes de morrer.

Mas mãe, és tão forte, afirmavam os filhos.

Teimosa, temperamento forte, queria ir enquanto tinha saúde para tal.

De que me adianta ir de muletas? Costumava dizer sempre.

Assim acompanhada pelo filho, bate à porta.

Sabe que novos moradores habitam o lugar de seus sonhos mais preciosos e isto dói na alma daquela mulher decidida e emotiva.

É atendida por uma mulher jovem e limpa, usando avental branco sobre as roupas caseiras.

Após as formalidades costumeiras, a mulher permite que Hilda entre na casa para concretizar seu sonho por tanto tempo acalentado.

Eis que cessam o trinado dos pássaros, o vento suave parece suspender-se em espera, os sons fogem cúmplices de um momento mágico.

É o momento do reencontro de Hilda com o passado.

Na magia deste instante fatal, Hilda menina corre na frente e vira-se para Hilda idosa, sorrindo e convidando a correr pelas escadas antigas, as mesmas de sua infância.

Os pés cansados e gastos de Hilda com dificuldade acompanham os pés descalços e rosados de Hilda menina. A menina, de pernas muito finas e compridas corre pelos corredores, abrindo portas e janelas, sempre sorrindo e convidando a idosa a acompanhá-la.

A casa é a mesma, todavia, estranhos mudaram os móveis, trocaram as cores das paredes, alguns pisos foram substituídos.

Hilda incomoda-se com estas mudanças, onde estão os seus brinquedos, seus vestidos de passeio, suas bonecas?

E a cristaleira sempre abarrotada de doces caseiros, onde fora parar?

Todavia, triste e conformada, segue a menina, que brinca e sorri. A menina vive a infância. Em sua mente criativa, tudo permanece igual e ela tem o futuro pela frente.

Convida a idosa para brincar.

Quando já ia partir, deixando ali suas lembranças mais caras, Hilda menina sempre sorrindo, mostra a cadeira de vovó.

Hilda volta-se, pela primeira vez sorrindo também, e vê o fantasma de vovó sorrindo para ela. Vovó dá uma piscadela marota.

Hilda volta as costas ao passado.

Vovó estará ali sempre presente, guardiã de suas lembranças.

Agora pode partir em paz.

Jeanne Geyer
Enviado por Jeanne Geyer em 16/06/2010
Reeditado em 21/06/2018
Código do texto: T2323590
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