PERNILONGO LAUREADO

Enquanto a vida no prédio continuava em sua normalidade, seus trezentos e vinte e dois moradores em idades variadas em seus afazeres cotidianos, alguns a saírem apressadamente para o trabalho externo, outros para seus respectivos colégios, um alvoroço acontecia ao pé da amendoeira, lá no final do amplo jardim do imperante edifício, na lateral esquerda de quem entra.

– Silêncio, cambada! – Grita o líder, bigode grisalho e reluzente a refletir aos olhos dos mais de cem subalternos, todos a se calarem, asas recolhidas, atentos ao momento tão esperado.

– Sabem que não podemos ficar aqui por muito tempo. Nossos predadores são numerosos e por demais terríveis! – Nisso todos olham ao redor, alguns a estremecerem por dentro, a tentar avistar algum sapo perdido na grama ou alguma lagartixa mais atrevida a esgueirar-se por entre as plantas ou até algum filhote de cobra mais saliente, a aproximar-se despercebido. Os mais precavidos passam um rápido olhar pelo alto, por entre as árvores mais próximas e até nos fios de alta tensão a buscarem enxergar algum pássaro, rolinha ou até mesmo pombos nas proximidades, mas nada há. A reunião pode prosseguir, informam os vigilantes atentos, distribuídos por entre a multidão impaciente.

– E é bom lembrar o motivo real de estarmos aqui. Mais uma vez reitero a vocês: os humanos não são nossos predadores, mas o doce alimento de nossas fêmeas hematófagas. Eles as sustentam e temos a obrigação de nos aperfeiçoarmos a mantê-los presentes sem molestá-los. – Mal acaba a frase e um “sem dúvida!” em uníssono mostra que todos buscam o mesmo fim.

– E sabem bem que nossa situação só vem piorando. Agora, com a proliferação da dengue em nossa região, estão nos comparando ao nosso primo pobre, causador desse mal. – Prossegue ele, levantando o cajado, mal ouve um zunzunzum na multidão. – Importante é estarmos a nos esconder porque estão querendo nos dizimar!

Foi a deixa para os mais jovens ficarem a se lamentar, alguns proferindo impropérios, os mais velhos pedindo calma e o burburinho se intensificando, todos ao mesmo tempo gesticulando, o velho líder obrigado a bater o rústico cajado na raiz da amendoeira, o golpe surdo a surtir o efeito desejado.

– Bem, senhores, hoje, para nós, é um grande dia... – respira fundo enquanto os últimos murmúrios e lamentos se perdem ao vento – estamos aqui para dar um merecido premio a Aníbal, nosso jovem cientista que enfim, conseguiu o tão esperado resultado para acabar com nossos infortúnios. Mas antes vamos conhecer essa invenção que mudará nossas vidas!

O grande líder vira-se para o lado e um jovem e elegante pernilongo, vestido com uma casaca branca, olhar franco e brando, aproxima-se em passos lentos do velho líder e mal o silêncio total se faz presente, inicia seu nobre discurso:

– Senhores, muito bom dia! Muitas e muitas gerações buscaram um meio de evitarmos tantas mortes entre os nossos por erros simplórios. Hoje, posso afirmar... isso acabou... – A frase nem bem chegou aos ouvidos dos mais atentos e um estrondo fez-se ouvir quando todos se voltaram para o playground e aos gritos de alerta voaram mais que rapidamente para as proximidades, enquanto o porteiro pegava a bola de plástico, já rasgada no espinho da roseira, que o guri e tenro alimento do terceiro andar jogou inadvertidamente para a área do jardim.

Após susto recolhido e todos já posicionados, corações já compassados, pode enfim, Aníbal, o jovem e graduado pernilongo, continuar sua preleção:

– Amigos... a evitar novos contratempos, serei breve... – O invejado alvissareiro pernilongo alça um voo rasante e ao confirmar que todos estão atentos, aproxima-se do líder máximo e dá continuidade a tão valiosa informação:

– Aqui em minhas mãos estão dois frascos... – suspende as mãos enquanto todos avolumam os pescoços a apreciarem tão fantástica descoberta expostas em frascos com rótulos em azul e vermelho – o da direita, intitulado Geltek é o anestésico para ser utilizado no ferrão quando nossas fêmeas forem se alimentar. Mais nunca o humano, em qualquer idade, irá sentir suas ferroadas. Teremos alimento em abundância sem afetar nosso meio de sobrevivência. E esse gel ainda eliminará os microorganismos carregados por elas e causadores de tantas doenças! – Não adiantou o pedido de silêncio pelo mestre. Todos se abraçaram, gritaram, pularam, esvoaçaram e se bateram enquanto alguns davam cambalhotas e só se acomodaram quando o experiente líder imitou o silvo do pintassilgo e de imediato terminou o alvoroço.

– E nesse outro frasco... – suspende a mão esquerda e apresenta o frasco de rótulo azul – está o Geltak, o protetor a camuflar o zumbido provocado pelo vento em nossas asas. Os humanos não irão se queixar por míseros mililitros de sangue suprimidos a cada dia por nossas mães, irmãs e filhas. E muito menos agora, sem doenças, zumbido a irritá-los ou qualquer tipo de dor...

Nem deu tempo de comemorar. Valdir, o porteiro, ao pegar a bola furada de Luquinhas um pouco antes, viu de soslaio a concentração dos pernilongos e sorrateiro, inseticida à mão, já estava a pegar a cambada de surpresa quando um dos vigilantes deu o aviso, bem na hora em que Aníbal exultava tão preciosa invenção. Tampouco deu tempo de receber o tão merecido premio: escafederam-se!

RAbreu
Enviado por RAbreu em 16/06/2010
Código do texto: T2322792