Vida felina

Quando os telhados transformam-se em cascatas e deságuam em poças repletas de lodo, ouve-se o som lamuriante dos anônimos “Filhos-de-Ninguém” que rondam nossas casas a procura de um abrigo em qualquer canto. Estão todos úmidos e humilhados a lamentar a sorte cada vez que o vento bate como um frio chicote. Mas se as águas não mais caem e a Lua resolve dar o ar de sua graça num céu que cintila, uma sinfonia precedida de terríveis gritos agudos é executada acima das nossas cabeças.

O mesmo quadro de sofrimento e paixão é “repintado” a cada noite e se desbota com o nascer do dia. Sob a luz dourada do Sol todos se transformam em criaturas elegantes cujo porte não deixa transparecer a miséria e dureza de suas vidas. Usam de astúcia e abusam da beleza que têm para conseguir o que precisam e valem-se da leveza e agilidade para escapar das constantes perseguições. Belos olhos verdes ou azuis parecem nos hipnotizar por instantes e numa fração de segundo lá estão eles distantes e solitários com o troféu em sua boca. Passam então, a degustar sofregamente a suada refeição. Coitados! O que fariam se pudessem imaginar que eles também poderiam estar sendo “devorados” por algum excêntrico de paladar duvidoso.

Pobres criaturas! Porte de príncipe e uma realidade de mendigo. Por que tanto misticismo em torno da sua figura? A Idade das Trevas já se foi e as mesmas superstições continuam. É traiçoeiro, é falso, é inimigo do homem, não é de Deus. Se é preto, dá azar. Talvez haja dificuldades em aceitar quem é independente e livre por natureza.

A tarde se inicia prenunciando toda a passionalidade da noite. Quando então todos eles são pardos. Será verdade? No aconchego de uma almofada repousa um enorme persa, num outro sofá, um angorá e, pacífico numa coleira, um siamês. Além desses, um devon-rex espia da janela da sala seus semelhantes virando latas, mas livres. Independentes, mas não solitários.

Triste vida felina! De um lado, o conforto de uma sala acarpetada, com almofadas de cetim e peixe fresco à disposição; de outro, latas de lixo, restos de comida e o fantasmagórico som dos tamborins.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 14/06/2010
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