Primpéria

Moro no mesmo bairro há trinta e quatro anos. Cheguei no dia 05 de outubro de 1975, aos cinco anos de idade recém completados. Já havia pisado aqui aos dois anos de idade (escrevo tão acertadamente porque vi a data numa fotografia de infância cuja imagem era a minha na frente do que era a minha atual residência). Foi aqui nesse bairro do Porto do Rosa que aprendi a ler e a escrever. Fiz meus primeiros amigos. Cresci e amadureci, embora conserve ainda traços daquele menino de cabelos negros e pesados e olhos grandes e castanhos muito escuros, quase pretos, insistentes em registrar imagens inusitadas nos microcosmos circundantes. Dum canteiro de plantas rente às raízes ainda continuo a enxergar (embora com óculos há quase doze anos) a micro-fauna de caracóis, formigas e minhocas e a micro-flora (se assim posso nomear) de fungos, liquens e musgos que ninguém vê além das crianças. Meus sobrinhos e outras crianças já quase passam desapercebidos desse universo e eu quase quarentão ainda fico agachado todo sujo olhando a terra. Sem permissão porque não sou cientista, agrônomo ou jardineiro. Mas posso fazê-lo porque sou louco. Aos loucos permite-se tudo como se permitia a Tchantchas, de quem falarei a seguir.

Era uma mulher negra extremamente elegante. Tanto no andar quanto no vestir estiloso e bem cuidado. Fosse uma celebridade e lançaria moda. Ela era atemporal. Parecia uma personagem histórica e ao mesmo tempo anônima. Sempre passava pela minha rua, que a época ainda não era pavimentada. Não caminhava. Desfilava seu corpo esguio e altivo com fagueiro requebro incrivelmente desprovido de sensualidade. Impressionante como alguém tão bonita podia não despertar em ninguém o instinto do desejo. Sua personalidade que ninguém conhecia não permitia tais intimidades nem em pensamento. Sua voz era uma incógnita. Seu pensamento deveria ser: “Eis meus súditos a quem devo permitir visão passageira de minha imagem.” Realmente ficávamos imóveis perante ela. Sem saber de onde vinha e para onde ia.

Tentei marcar a que horas passava para saudar em pensamento minha rainha. Geralmente era pela viração da tarde, o horário de minha observação dos pássaros sobrevoando a lagoa do Boaçu com sua grande palmeira nunca por mim tocada, mas um marco no horizonte próximo demarcado ao fundo pela Serra dos Órgãos. Ia para o portão de vergalhões soldados e pintados com zarcão. Descia por um desnível até ao que poderíamos chamar de calçada (o espaço onde os raros veículos não passavam). De frente a minha casa existia a paisagem mais bonita do planeta (e penso assim até hoje, só que não a vejo mais quando saio pelo portão). Casas foram construídas do lado oposto. Não vejo mais a Ilha de Paquetá e nem a lancha e os navios pelo fundo da Baía da Guanabara. Vejo somente a casa da minha vizinha com seu terraço de telhas metálicas e suas duas mangueiras ao fundo. Mas quando era criança tinha um cenário cinematográfico e onde hoje há a casa da Vera havia um terreno baldio com um monturo e um tronco de árvore cortado como se uma mesa fosse. Brincávamos ali. Escondíamo-nos atrás dele. Usávamo-lo como palanque ou palco. Enfim servia a toda a imaginação infantil. A um desses encontros da turma, cheguei atrasado porque tive de fazer alguma coisa em casa para a minha mãe. Porém minha irmã e meu irmão (ambos mais novos) já estavam por lá com nem lembro mais quem. Foi quando minha rainha passou e seu súdito não a foi saudar. Minha irmã e meu irmão entraram correndo com as outras crianças lá para casa ansiosas por contar da novidade. Foi então que minha rainha ganhou o nome provisório de Tchantchas. Ela havia falado com eles. E eu nunca ouvi sua voz. Não sei como era seu timbre. Deveria ter voz de soprano lírico. Ou seria contralto? Não sei até hoje e nem eles souberam imitar seu tom. Com certeza único como única era sua figura. Minha irmã e meu irmão só souberam me dizer que ela perguntou a um dos meninos (se não me engano, o Beto): “Está comendo tchantchas, meu filho?” Fiquei desesperado. O que seriam tchantchas? Até hoje não encontrei essa palavra em dicionário algum. Seria manga na língua sagrada dos nobres? Ou seria o que os meros mortais conseguiam depreender da fala de uma figura intermediária entre os homens e Deus?

O tempo passou... Derrubaram o bosque de eucaliptos. Os biquinhos-de-lacre foram embora logo depois das flores amarelas e do capinzal. Novos vizinhos foram chegando. Uma rodovia federal dividiu o bairro ao meio. Minha rua foi pavimentada. Enfim... O progresso machucou minha infância. Todavia assim como nosso corpo passa por transformações, meu bairro saiu da primeira idade e entrou na adolescência problemática. No lugar das espinhas a poluição. No lugar da música em volume alto, a buzina dos carros. Agora chegamos a um começo de idade adulta meio conflituosa. Paciência é o preço que se paga por crescer. Meu corpo de 1,80m e quase oitenta quilos não cabem mais na folha de papelão a deslizar ladeira abaixo. Não consigo mais surfar de peito na varanda molhada da minha casa, pois tenho quase um quarto do seu comprimento. A crise atinge a todos e nos impulsiona avante. E é isso que vou fazer mesmo sem minha rainha a quem devo batizar de Primpéria I (e única desse nome em toda a minha memória).

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 13/06/2010
Código do texto: T2316827
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