Uma janela para o nada
Para Tereza S. do Prado
Os telhados em frente à minha janela são multicoloridos. Cinza claro, cinza escuro, marrom, magenta, preto; salpicados de pontos azuis, brancos, prateados. Ao longe uma floresta de quintais exibe o verde escuro que oferece repouso aos olhos. As copas das árvores. O que restou delas. Antenas e fios se entrelaçam e dão ao céu, antes somente azul e branco, uma aparência desarmônica. Velhas e esquecidas linhas de pipas balançam indolentes ao sabor do vento leve, que traz um friozinho cortante ao nariz e aos pés. As mãos estão quentes. Afortunadamente. Nesta hora da tarde, depois de quase quatro horas do almoço, o estômago já me aborrece um pouco. Um leite quente com chocolate cairia bem. O trabalho não dá trégua. Malgrado a angústia de terminar esta tarefa, olho pela janela outra vez na esperança de avistar os pássaros que chiam e cantam num assobio ocioso, como se a buscar um quefazer nesta tarde cinzenta.
O sol anuncia sua presença no horizonte longínquo por trás de nuvens brancas e densas. O ponteiro do relógio gira num ritmo apavorante, trazendo a noite que será fria e solitária. Minhas costas pedem repouso e me dou conta de que não respiro por completo. Doem. Óculos sobre o nariz oleoso. A janela bate impulsionada pelo vento que anuncia a noite. Trabalho. Dor. Lá fora, soa forte o motor de uma lambreta na rua solitária. O tic-tac do relógio anuncia a angústia do tempo que corre rumo ao nada. Rumo à morte. Meus olhos insistem através da janela. A sacada do terceiro andar amarela e sempre fechada não tem parapeito. Sinto um frio na barriga e uma sensação de falência nas pernas. Minha grade me protege e guarda. Nove metros. Uma queda seria fatal? A janela está sempre fechada. O som dos periquitos denuncia convivência e amitié amoureuse. Entre pássaros não há solidão. Não há trabalho. A vida lá fora é alegre apesar da ausência quase total da luz do sol.
O sol ainda aparece, entre as nuvens, fraco e distante. Rapidamente desaparece e dá lugar a uma nuvem fria e triste. O trabalho. O relógio. Fome e boca metálica. Uma mensagem invade minha tela: “Dança do ventre para o dia dos namorados”. Namorados. Amitié amoureuse. Passarinhos. Meus pulmões reclamam um pouco de ar. A janela. O verde escuro das folhas anuncia alguma esperança depois dos telhados multicolores.
Outra mensagem invade minha tela. Acabou de entrar. É ela, a razão de minha vida. Não diz nada. Entrou. Conversa com amigos, decerto. Quanta alegria deve dar-lhes com palavrório e símbolos reles. Seu sorriso. Ah, quanta beleza há no seu sorriso. O sopro eterno da vida. Ela não me chama. Nem sequer percebe que estou aqui. Voltará para dormir?
O sol esvai-se como a sirene longínqua da polícia. Os pássaros voltam a cantar para a noite que se anuncia. Uma taquicardia invade o meu anoitecer. E as sirenes agora silvam alongadas e em ondas. Algum crime aqui perto?
O silêncio volta a tomar conta do ar lá fora, mas o relógio na parede anuncia a vida e lembra os compromissos. Contas. Luz, água, telefone, prestação da casa, supermercado. Trabalho inacabado. Tempo. Falta de tempo. Tempo de espera.
Meu estômago anuncia que é hora de interromper para um lanche rápido, um banho, e aulas à noite. Quatro horas de aulas noturnas com alunos desinteressados. Não são todos. Quase todos. Será que ela estará em casa quando eu voltar?
A minha vida é feita de espera. Eu esperei tanto tempo por ela. E agora a sua ausência me tortura. Às vezes nem fala comigo. Sinto-me como se fosse um móvel, um utensílio. Muito útil, mas substituível. Velho, gasto. Inacabado, incompleto.
Não posso reclamar. Quando ela chega feliz e sorri para mim, lança-me num abismo de beleza no qual mergulho com segurança no fio tênue do amor. Foi o meu amor por ela que salvou e deu sentido à minha vida. Basta-me saber que está na mesma cidade que eu, que respira o mesmo ar e que está feliz. Basta-me a sua felicidade e eu sou feliz. Completamente feliz.
A noite caiu densa e ela ainda não voltou. Bastava uma mensagem para inundar-me de alegria. Uma mensagem. Um sorriso, um beijo, um carinho levam-me a todos os céus. Céus dos homens e dos deuses.
Depois dela, a vida ficou muito preciosa. Mas a morte também já não assusta. Conheci o amor e a felicidade. E o que é a vida senão a busca pelo encontro com o amor e com a felicidade? Ela é o amor e a felicidade.
Minha janela, à noite, já não desnuda a paisagem vespertina e o silêncio quieto é quebrado pelo relógio que lembra o cansaço e os compromissos matutinos. Ela ainda não voltou. Há mais de vinte e quatro horas que não a vejo e a luz do sol matutino não iluminará as cores se ela não voltar. O ar rarefaz quando ela chega. Não precisa falar, basta-me sentir o ar aquecido por sua presença e o mundo se faz luz e alegria. E, quando dorme, seu leve respirar é música para meus ouvidos. Ando pé ante pé para não disturbar-lhe o sono leve. Imperdoável seria acordá-la.
A velhice agraciou-me com a sabedoria dos vinhos e dos livros; os bons melhoram com o tempo.
O frescor da juventude não lhe permite entender o que sinto. Um dia saberá. É fatal. O tempo é fatal e a tudo conduz.