IDA AO JOGO DE FUTEBOL
Já deveria estar dormindo a algum tempo. Normalmente durmo por volta das dez horas. Já são quase três horas de uma madrugada fria, de Junho, e eu ainda estou acordado. Em meu quarto, luz apagada, estou deitado em minha velha cama de solteiro. O colchão antigo, já possui deformações que refletem meu corpo. Lençol limpo, permaneço imóvel, deitado, com uma travesseira a mais, entre as pernas. Meus olhos intercalam momentos de abertos, olhando para o nada, e momentos de fechado, torcendo para que o sono chegue.
Quarto pequeno, três portas de um armário folhado com lamina de mogno a minha direita, uma janela fechada na direção dos pés da cama, e eu ansioso pelo amanhã que ousa em não chegar.
Hoje é sábado, ou melhor, ontem foi sábado, já que o avançado das horas me coloca tecnicamente no domingo. Estou muito ansioso de felicidade. Pela primeira vez poderei ir ao estádio de futebol, assistir meu time do coração jogar contra o Jupitanga, da Serra dos Carajás
Meu pai, nunca havia permitido que eu fosse com meus amigos assistir, ao vivo, um jogo no estádio. Ele e minha mãe, justificando me proteger, sempre proibiu que eu fosse lá. Agora, meu pai concordou. Estou muito feliz pela confiança de meu pai. Mais feliz ainda por finalmente poder assistir a este jogão, lá no maracanã.
Meu time vai completo. O Jupitanga vem ao rio pela primeira vez. Eles estão vindo de ônibus, desde Carajás. Fretaram um ônibus leito, e pretendem chegar cerca de duas horas antes do jogo, para permitir algum descanso aos seus jogadores.
Vai ser o jogo do ano. A televisão não vai transmitir este jogo. Esperam vender todos os cinco mil ingressos colocados a venda.
Meu time perdeu as últimas três partidas. Está em penúltimo lugar neste difícil campeonato, que é a segunda divisão do campeonato brasileiro. O Jupitanga, vem jogando muito, e está em décimo terceiro. Por sorte o time deles vem desfalcado. Dois jogadores foram expulsos na última partida, um foi preso por fazer sexo com a cabra de um lavrador da periferia. Dois estão machucados a mais de três meses. Parece que o centro avante deles, está negociando um novo contrato, e também não vem para esta partida.
O importante é que eles são muito perigosos. Um time de uma cidade rica em minérios, conseguiu selecionar a nata de jogadores da região, inclusive do Acre e de Rondônia. É um time muito forte, treinado pessoalmente pelo Robertinho. Robertinho é pentacampeão de futsal em Carajás. Dizem que ele é o HOMEM. Foi escolhido a dedo pelo diretor de futebol do Jupitanga.
Agora já são mais de três horas, e ainda estou sem sono. Mas também pudera, durante toda a minha juventude esperei por este momento. Poderei ir, junto com amigos, ao bom maracanã. Que emocionante.
Meu pai acha que por ser eu um jovem superdotado, acabo sofrendo um pouco de falta de concentração para as coisas simples. Realmente sou um pouco irrequieto e acabo me perdendo quando a concentração requer um foco mais simples. Porem quando a complexidade aumenta, acabo tendo uma boa concentração.
Em coisas simples como ler um livro, estudar citologia, física ou equações trigonométricas, alem de jogar um bom jogo de cartas, ou damas, até mesmo xadrez, minha concentração acaba se dispersando e perco o foco. Mas quando as coisas se complicam, como: Tomar banho, ir até a escola, atravessar a rua, ou mesmo soltar pipa, minha concentração nunca falhou.
Uma prova é que terminei a terceira série do segundo grau ano passado, com méritos. Infelizmente, acabei não passando para nenhuma faculdade particular. Para as públicas, meu pai não deixou eu tentar o vestibular para elas. Acredito que no fundo ele creia que as faculdades públicas sejam muito fracas, e acabam sofrendo mais com o problema das greves. Meu pai sabe que minha competência está preparada para as particulares.
Terminei tão bem o segundo grau, que minha mãe comentou que foi necessário uma reunião de conselho de classe para que os professores decidissem por me aprovar. Os professores gostam tanto de mim, que esta reunião levou quase quatro horas para decidirem se me aprovavam ou se me manteriam com eles, por mais um ano. Fiz o vestibular por mera distração. Acabei assim não passando em nenhum deles. Fiz mais de dez diferentes vestibulares, para as mais diversas faculdades particulares, e não passei em nenhum. Tudo bem, também não queria passar mesmo. Desta forma posso me dedicar para o vestibular deste ano, e inclusive fazer concursos para auxiliar de serviços gerais da prefeitura.
Este ano eu vou tentar de novo. Meu pai falou para eu desistir. Acredito que meu pai suponha que quando eu passar, vou acabar me destacando tanto, que será criada uma situação difícil para com os demais alunos.
Ele sabe que como eu fiz seis vezes a terceira série, eu vou arrebentar.
Meu pai é tolinho. Finalmente agora ele confiou em mim. Fico tão orgulhoso de meu pai, que assim que acordar vou lhe dar um beijo.
A mais de doze anos que espero ansiosamente esta oportunidade. Foi toda a minha juventude. Hoje com trinta e um anos, com o segundo grau completo desde o ano passado, poderei ir ao futebol. Vai ser muito bacana.
Meus amigos, não tiveram a mesma sorte que eu, enquanto eu refazia as mesmas séries diversas vezes, eles passavam de ano, e não conseguiram solidificar o conhecimento.
Finalmente acabei dormindo.
Num relance acordo. São nove horas. O dia está claro. O frio parece ter diminuído. Céu de brigadeiro. Tudo perfeito para uma grande peleja.
Espreguiço-me. Aprendi com meus gatos. Sempre que acordavam eles se espreguiçavam. Muitas vezes eles se espreguiçavam, somente para voltar a dormir. Eu aprendi a me espreguiçar sempre que acordo. Me sinto muito bem depois disto. Todos poderiam fazê-lo.
Levanto, vou imediatamente escovar o destes, lavar o rosto e me pentear. Isto eu não aprendi com os gatos. Aprendi com a minha mãe.
Até pelo menos os vinte e quatro anos, eu tive dificuldade em fazer esta tríplice tarefa. Algumas vezes em lavava os cabelos, penteava os dentes e escovava o rosto. Mas como sou inteligente, aprendi. Agora chego ao banheiro, escovo os dentes, lavo o rosto e por fim penteio os cabelos. Uma vez ou outra eu troco a ordem e me enrolo todo. Minha mãe que é muito esperta já sabe, se levar mais de quarenta minutos no banheiro, é porque estou enrolado com a sequencia. Nestes dias, ela vai até o banheiro apenas para me lembrar da sequencia normal. Tão logo ela me leva para a cama, e juntos refazemos o caminho até o banheiro, eu consigo fazer as três tarefas.
Retorno ao quarto, troco minha roupa e estou pronto para ir ao jogo.
Minha mãezinha, me obriga a tomar um café com biscoitos. Meu pai me leva para a varanda e começa um sermão. Ele tenta até remover de mim o desejo de ir ao jogo. No fundo acho que ele quer somente ter a certeza que é importante para mim ir a esta partida.
Ele fica pelo menos duas horas repetindo tudo o que tenho que fazer, como devo me comportar, e os cuidados que devo tomar.
Minha mãe interrompe este ensinamento de meu pai, pois já é hora de almoçarmos. Mesa pronta. Bife a milanesa, batatas fritas e um bom arroz branco com um feijão mulatinho. Apesar de detestar, ela me obriga a comer uma salada de tomate, cebola e alface. Para beber ela preparou um refresco de limão. Como sobremesa, um suculento pudim de caramelo. Me fartei de tanto comer.
Terminado o almoço, meu pai liga para os meus amigos, visando confirmar se eles realmente iriam para o jogo. Aproveitava e explicava que era minha primeira vez, e que eles tivessem cuidado comigo. Pai é pai. Como sempre tentava me proteger.
Na hora de sair, ele pegou um crachá que havia preparado. Nele estavam meu nome, endereço e telefones para contato. Alem de colocar este crachá no peito, ele escreveu uma cartinha com todos os detalhes de minha identificação e o colocou no bolso com velcro de minha bermuda.
No caminho, de rádio ligado, soube que além dos seis desfalques já esperados, dois outros jogadores tiveram infecção estomacal durante a viagem, e estão assim também fora do jogo. Meu time do coração, da alma, do meu próprio ser, jogará completo. Vamos ganhar, e sair do grupo do rebaixamento para a terceira divisão.
Cheguei ao maracanã com os amigos. Incrível! Passei o ingresso na roleta e estávamos dentro. Subindo a rampa que dá aceso a arquibancada, meu coração vibrava. Ele, além de enorme, era muito bonito por dentro.
Ver o Maracanã por dentro, foi sensacional. Ver meu time entrando em campo foi fantástico. Ver meu time perder o primeiro gol foi fabuloso. Agora ver o Jupitanga fazer o primeiro gol foi triste. Vê-lo fazer o segundo gol foi decepcionante. Ver meu time não reagir foi melancólico. Ver o jogo acabar, com dois a zero para eles foi desesperante.
Saímos. A torcida revoltada criava tumulto do lado de fora do estádio. Em um momento o tumulto virou briga generalizada. A polícia chegou botando para quebrar. Gás de pimenta. Balas de borracha. Bombas de efeito moral. Todos corremos. Quando finalmente parei, não encontrei meus amigos. Cadê eles? Procura daqui, procura dali e nada. O que fazer. Vejo um táxi. Meu pai falou que na saída, dependendo da situação, que eu pegasse um táxi. Foi o que fiz.
Sinal feito. Ele parou. Abriu a porta e entrei.
O motorista perguntou: - Vamos para onde.
Eu respondi: - O senhor eu não sei, eu quero ir para casa.
O motorista riu e falou: - Você e bem espirituoso. Pois não. Diga-me o nome da rua.
Parei e pensei. Falei: - Esta é a Avenida São Francisco Xavier. Eu estava endo a plaquinha. Viu só como foi bom estudar bastante, pensei.
O motorista falou: - Esta eu sei.
Eu rapidamente repliquei: - Se o senhor sabe, porque pergunta.
Ele riu de novo.
- Brincalhão, falou ele.
E continuou: - Eu quero saber o nome da sua rua.
Branco geral. O nome da minha rua? Qual seria o nome da minha rua. Pensei... Pensei... Pensei...
- Amigo motorista, não me lembro do nome da minha rua, falei.
O motorista muito gentil falou. – Calma, o senhor vai se lembrar. O senhor não teria nenhum documento que tivesse o nome da sua rua?
Pensei de novo.
- Documento com o nome da minha rua, tenho não, senhor, falei eu.
O motorista virando-se para o banco traseiro, comenta: - Este crachá em seu pescoço. Ele deve ter o nome da rua.
Respondi. – O nome da rua tem não senhor.
- Mesmo assim, dê-me ele.
Peguei e dei-o ao motorista. Ele leu. Pegou seu celular, e em instantes falava com meu pai.
- Meu senhor, estou com o seu filho. Achei o crachá dele, e estarei levando-o até sua residência. Quero confirmar se o senhor pagará a corrida até sua casa.
Não ouvi a resposta de meu pai, mas deve ter sido sim, é claro.
O motorista devolveu-me o crachá e falou: - Seu crachá tem o seu endereço.
Eu falei. - Tem sim, senhor. O endereço eu sei de cabeça. Mas o senhor queria o nome da minha rua. Se o senhor me pedisse o endereço eu já o teria dado. Não conheço o nome da minha rua. Ela é uma avenida. Avenida Fracelino Gomes Bulhão.
Mas é lógico que meu pai, culto e inteligente como ele é, deve saber o nome da rua, além do nome da avenida. Deve tê-lo passado ao motorista, pois já estávamos para partir.
O motorista vira-se mais uma vez e fala. – Meu senhor, vou levá-lo até sua casa. Seu pai o espera. Agora por favor, pelo amor do bom deus, fique quieto. Não faças nada. Não toque na porta, muito menos nas alavancas. Vou fechar as janelas e travar as portas. Fique bem quietinho, que logo você chegará até seu pai.
O motorista do táxi era um bom homem. Ele já havia percebido que eu era um superdotado, e por isso hiperativo. Ficarei quietinho, ele terá orgulho de mim.
Arlindo Tavares