Aquele que usurpava sonhos.
Havia no reino das garças um homem, de estatura baixa, olhos verdes de um olhar que era capaz de ferir. Um olhar de lince que penetrava na alma daqueles que eram alvejados por seus olhos desejosos.
Este homem, apesar da baixa estatura era capaz de entreter aqueles a sua volta. Com sua capacidade de, primeiramente ouvir e só posteriormente começar a explanar os seus pareceres sobre os assuntos levantados nas pautas dos salões nobres do reino das garças.
Ele vinha de outro reino, um belo reino marítimo e distante do qual ele pouco falava. E por falar pouco de seu passado, fui ficando com minha atenção voltada cada vez mais para este mistério. Ele devia possuir algum tipo de segredo sombrio, ou no mínimo uma historia de vida memorável. Seus olhos de lince e sua língua esperta e afiada, sempre a falar aquilo que os nobres, reis e catedráticos queriam ouvir, eram suas armas para uma espécie de ascensão palaciana que ele desejava.
Com o passar do tempo fui conhecendo-o melhor, mas ele pouco se importava comigo um reles menestrel. Eu não possuia o poder que ele tanto procurava em suas amizades. Ele almejava somente amigos influentes, poderosos para serem seus degraus na enorme escada que leva ao poder.
Sempre nos encontrávamos em uma taverna, onde bebíamos o bom hidromel e jogávamos o melhor carteado. Enquanto as cartas e as apostas eram postas sobre o pano verde dos viciados, enquanto perdia-se a sobriedade e as peças de ouro. A felicidade e a dignidade eram postas também em jogo para que as cartas continuassem a serem espalhadas e a sorte sorrise: algumas vezes para os mais audazes, outras para os mais contidos. Esse é o preço que cobra o Deus da Sorte. Mas no fim esse era um jogo onde todos perdiam. Perdia-se ouro para que nos breves instantes em que o montante de dinheiro brilhava cintilante sobre o pano verde dos vícios, todos em volta da mesa pudessem sonhar, os sonhos que só aquele para o qual o Deus da Sorte rolasse bons resultados seria o dono.
Com a frenquencia, mãe da rotina, noite a noite fui jogando com aquele homem desejoso de poder, e fui paulatinamente percebendo que a cada dia ele possuía uma historia diferente.
- Quero ser um grande catedrático, senhor de livros e mestre do conhecimento. – disse uma noite.
- Meu maior sonho é ser um grande astrônomo, estudar os enigmas que toda noite são expostos a nos através dos astros celestes que nos encantam com sua beleza e mistério. – dizia em outras noites.
- hoje passei a tarde treinando montaria, pois almejo o cargo de paladino da terra das garças. Quero lutar sobre a proteção das donzelas e vencer inimigos e monstros.
E assim sucedia-se noite a noite, sobre a mesa de nosso carteado. Cada semana que se passava ele tinha um novo sonho e os outros jogadores, inéditos jogadores daquela mesa onde somente eu e ele nos repetíamos, acreditavam piamente nas bravatas ditas por ele. E sempre que ele falava de um sonho novo, seus olhos verdes como a esperança no coração de um adolescente, brilhavam o fulgurar da ambição.
Certa noite fui surpreendido com as seguintes palavras entre um carteado e outro:
- Estou lendo muitos livros, quero ter uma bagagem enorme de leituras e adquirir muito conhecimento para assim ser capaz de contar qualquer historia para entreter, quero também ser hábil no falar e no agir para conquistar as pessoas com meu carisma e mais que tudo isso quero ser detentor de grandes e obscuros conhecimentos para tornar-me mestre da biblioteca secreta do reino das garças. –
Nesse momento derrubei as cartas na mesa. Aquele era o meu sonho. Então sem pestanejar sai do salão comunal da taverna, encostei-me em um velho barril, acendi meu cachimbo e comecei a ponderar. Vislumbrei algo que deveria ser confirmado.
Por dias e noite segui aquele homem de hábitos estranhos e confirmei: todas as noites ele entrava em uma espécie de templo. Um templo belo e rebuscado, cheio de adornos fabricados pelos melhores ourives, com únicos e caríssimos quadros, tapetes dos mais elaborados desenhos pintavam o chão com imagens de uma beleza que só poderia ser definida como gananciosa.
Estava claro para mim que aquele era um templo em louvor a poderosíssima Deusa da Ambição. E o homem pequeno de olhos verdes e coração desejoso de tudo, era um de seus mais queridos seguidores. Entendi finalmente que o toque da mão insaciável da Deusa da Ambição cobriu o coração dele de uma vontade de querer sempre mais.
Aos poucos usando de lógica fui descortinando os mistérios daquela existência infeliz e insaciável.
A principio ele desejou coisas pequenas, uma prostituta, uma donzela, um odre do melhor vinho, mais peças de ouros, poder, status, um titulo de nobreza... e assim foi caminhando, passo a passo, pulando de desejo em desejo, alcançando aquilo que desejava e logo desejando outra coisa. Quando conseguiu segurar em suas poderosíssimas mãos tudo aquilo que poderia ver, sentir e tocar, já não tinha mais o que desejar. Mas a semente da Ambição cresce eternamente e nos mais altos píncaros da infinitude ela ainda floresce sempre crescendo, sempre aumentando. E assim sem mais o que desejar só lhe restava desejar o que os outros desejavam. Passou ele então a ser um usurpador de sonhos. Não bastava um único minuto de conversa para ele apoderar-se do sonho alheio e deseja-lo como se fosse seu mais forte desejo de infância e assim ia ele correndo atrás desse sonho que não era seu, até deparar-se com outrem e passar a buscar novamente com toda a gana de um cão esfomeado a caçar outro sonho, numa sucessão de desejos que nunca parava, que tendiam sempre para o infinito e incoerentemente iam além dele, pois até o infinito é pueril para a Deusa da Ambição.
O pequeno homem de grandes desejos, veio a falecer, não faz muito tempo. Sem casa, sem família, sem amigos e acreditem todos, sem nunca ter conseguido realizar o único sonho que era verdadeiramente seu, o sonho que jaz no coração de todos nós, o mais simples e complexo sonho: o sonho de ser feliz.
Pois assim são aqueles que seguem a poderosíssima Deusa da Ambição, de tanto sonharem, de tanto quererem mais, tornam-se os mais reles e imundos escravos. Tornam-se autômatos, golens que possuem uma única comanda: querer sempre mais.