O Aniversariante
Ela fechava o zíper do seu vestido preto. Olhava-se no espelho examinando sua aparência.
Me olhou deitado na cama, fez careta, voltou a se maquilar. Agora colocava pó de arroz no rosto.
- Não vai se levantar?
Ajeitei-me, dei uma boa espreguiçada.
- Aonde você vai toda arrumada?
- Não sabe? Sua roupa está pendurada na cadeira.
Vi um fraque preto, camisa branca e gravata.
- Eu não estou lembrando que também iria.
- Não? É melhor levantar, se não chegaremos atrasados.
- Não sei por que, nem sei aonde iremos.
- Lá saberá. Levanta-se e se vista.
Ela era misteriosa às vezes. Como minha mãe.
Vinha com enigmas, charadas, queria que eu fosse como ela.
Odiava mistérios, ficava horas tentando desvendar e quando via que não conseguia: “Ah, mãe, desisto...” Ela ria e mostrava o negocio que estava bem no meu nariz. “Tolinho” e apertava minhas bochechas.
Mas um dia disse: “Chega mãe, chega desse papo de mistério, cansei!
Peguei trauma e quando Lídia fala de uma forma misteriosa, fico puto.
- Em que lugar vamos Lídia?
- Num cheio de pessoas.
- Shopping?
- Acha que eu iria ao shopping vestida assim?
Tinha razão. Estava muito arrumada para passear no shopping.
- Na casa da sua irmã Clodilde?
- Clodilde deve estar lá como todo mundo.
- Todo mundo quem?
- Os parentes, familiares, todos.
Que estranho e eu nem sabendo de nada.
- Uma reunião de família?
- Todos reunidos. Levanta, antes que seja tarde.
Passava batom no lábio.
Eu não levantarei sem saber que lugar irei e o que vai acontecer.
“Filho se arruma que vamos à casa da tia Lucia.”
Detestava ir à casa da tia Lucia. O lugar parecia um cemitério de tão quieto que era. Não tinha nada pra se fazer, apenas cartas, cartas de baralho e um radinho que só pegava AM.
Cresci e nunca mais soube da tia Lucia. Minha sempre liga pra ela.
- Lembrei da tia Lucia. Faz tempo que não a vejo.
- Talvez ela vá estar lá. – Disse Lídia passando o perfume no pescoço.
Espantei. Até a tia Lucia?
- E o meu tio Flavio?
- Também.
Tio Flavio... Esse eu gostava de visitar, não pelo tio, mas de uma menina loirinha que brincava de pular corda na rua. Dei meu primeiro beijo nela. Ela achou nojento, eu maravilhei. Quis repetir, ela fugiu.
- Está ficando tarde, anda!
- E sua família?
- Já não falei que é a parentada toda.
Epa. O negocio era sério.
Que lugar caberia os meus parentes e os de Lídia? Temos uma numerosa família. Por que não lembro?
- Lídia, o que tá acontecendo?
- Nada. Levanta e se troque.
- Cê sabe que odeio mistérios. Conte o que é.
- Você sabe querido.
- Eu não sei de nada.
- Diga o que é, se não vai sozinha.
Mistérios, mistérios. Tudo girava em mistérios.
A vida é um mistério, não é?
Meu casamento com Lídia foi cheio de mistérios. Não por minha causa, mas dela. Casamos numa sexta-feira treze, às treze horas, num tempo fechado e chuvoso. Pouca gente compareceu. Juninho, Marcelo e o Hugo vieram. Amigos da rua.
“Vá, conte até dez que a gente vai se esconder.” – Dizia o Hugo pra mim.
Eu contava até dez. eles se escondiam na casa abandonada e sabiam que eu tinha medo de entrar. Mania de criança. Cisma besta. Acredita nas historias dos adultos.
Receoso, entrava. Era escuro. Hugo dava um berro que me assustava e me fazia cair. Aí o Juninho, o Marcelo e o Hugo corriam e eu saia chorando e eles rindo de mim. Coisa de molecada. Depois cada casal, se formou e tá bem.
- E o Juninho, o Hugo e o Marcelo?
- Vão estar lá amor. Levanta, sabe que não gosto de chegar atrasada. Vou à cozinha, ao voltar quero vê-lo pronto.
Eu não sairei sem saber aonde vou?
E se a Estela estiver neste lugar?
Ela não teria coragem. Ou teria?
Pergunto? Besta. Quer estragar tudo?
Lídia nem sabe da Estela e nem saberá.
Saio ou não da cama?
Muita gente vai estar neste lugar. Até o tio Flavio!
E a mamãe, espero que não apareça com enigmas.
Odeio isso, não devia ser assim.
“Filho, se você adivinhar que tenho nas mãos de dou ele.”
“É... é bala, mãe!”
“Tolinho. É chocolate. Vai ficar sem premio.”
Se for pra descobrir, terei que levantar, botar a roupa e saber aonde vou.
Quando Lídia volta, já estou vestido.
- E aí, estou pronto. Vai me dizer pra onde vamos?
- Aniversario querido.
Aniversario? Não lembro de ninguém aniversariando. Talvez da Estela. Descarta. Estela não vai estar lá.
Da minha mãe eu sei. Dos meus tios... Ah, chega! Não quero quebrar a cabeça.
- Quem comemora, aniversario?
- Pronto? Então vamos, eu dirijo.
Era um salão. Um grande salão que paramos. Fora, vi pessoas desconhecidas. Homens de fraque preto, mulheres vestidas e crianças da mesma cor.
- Vem amor. – Disse Lídia.
Foi me puxando pelo braço. As pessoas foram abrindo passagem e sorrindo começaram a bater palmas.
- Anda amor. – Falava Lídia.
Pessoas desconhecidas. Homens, mulheres e crianças me aplaudindo. Quem são elas?
Entramos no salão. Muita gente. Elas abriram passagem e um longo corredor apareceu. Esses eu conhecia. Eram parentes e amigos meus e de Lídia. Começaram a sorrir e bater palmas. Tudo para mim.
Hugo, Juninho e Marcelo. Suas esposas e filhos. Meus tios Flavio e Lucia. Mamãe e Estela...
Ah, ela veio. Como teve coragem? Vai estragar tudo! Vou fingir que não a vi.
Todos me aplaudindo, todos de preto.
- Lídia que negocio é esse, por que tá todo mundo batendo palmas pra mim?
- Seu aniversario, querido. A surpresa era esta, todos aqui pra comemorar o seu aniversario.
- Não é o meu aniversario porra! Meu aniversario é no final de ano.
- Ah, esqueceu amor... Pare aqui.
Paramos.
- Fique aí amor, não saia.
Diante de mim um caixão.
Caixão?
Devia ter um bolo e não um caixão.
Só faltava minha mãe fazer aquelas perguntinhas de adivinhações.
As palmas cessaram. Ficou o silencio.
Aproximo-me do caixão. Dou uma olhada pra ver quem está dentro.
Um arrepio percorre minha espinha.
(Rod.Arcadia)