CONTO DE UMA NOITE QUALQUER

Ele gosta da escuridão. Sempre gostou de apagar as luzes da casa quando ia fazer amor.Desta vez não está tão sozinho assim. Ele tem uma parceira à altura, alguém com a mesma obsessão pronta para o que der e vier.

Ela dança naquele apartamento para ele. Ele então decide não se masturbar como de costume. Ela se aproxima e ele a come com os olhos quando apenas a entrevê. Ela em cima dele, ele em cima dela e a caneta em cima da mesa e a borracha em cima da cadeira e o estojo por sobre o tapete e o tanto de presunto no prato e o tanto de queijo parmesão guardado na geladeira e o suco de polpa de fruta armazenado no freezer e as bolinhas de queijo também armazenadas no freezer e a fumaça fria que esbofeteia a sua face naquele instante e aquele beijo que derruba as defesas daquela alma inquieta e ela e ele que rolam no chão qualquer e que gemem e gemem e que gritam e que se arranham e que se lanham e que se lambuzam e que fazem juras enlouquecidas e que mantém um ritmo alucinante naquele coito qualquer.

Ela se mexe ainda mais para facilitar a penetração e ele a tira do sério com uma intensidade raramente experimentada. Ela pede para que ele bata em seu rosto e ele o faz gentilmente e depois com um pouco mais de força. Ela dobra o corpo na direção da porta e fecha os olhos e se sente invadida por aquele espectro que é agora tudo que resta em sua sede de prazer extremo.

Ela pede para que ele a xingue, ela pede para que ele deixe a tal marca com a faca bem quente em seu braço.Ela pede para que ele passe a faca quente por sobre o seu corpo. Ela pede para que ele pegue o tal revólver. Ela pede para que ele coloque o cano do revólver na sua boca. Ela pede para que ele aperte o gatilho e a force a dizer que o ama.

Ela, de olhos fechados, com aquele cano de revólver em sua boca seca ou molhada ou tanto faz. Ele lá se mantém, mais ausente do que nunca, pois não sabe, do verbo saber, que está fazendo o que faz. Ela o excita decerto, mas parte dele não está ali. Ela se entrega inteiramente e não está ciente do fato de que ele não sabe que faz o que faz. Não sabe que ele se desconhece quase que por completo na sua sina de encontrar o próprio rosto.

Ela o abraça violentamente e pede um filho e ele apenas diz o que tem que ser dito numa ocasião como esta ou como outra qualquer.

Ele, no auge de um orgasmo sem igual, diz sim por assim dizer.

Ele não percebe que o café manchou a sua calça, ele não percebe que urinou fora do vaso antes de ter com aquela mulher. Ele não percebe que o zíper de sua calça está emperrado. Ele não percebe que não deu a tal da descarga. Ele não percebe que o cheiro das fezes está a empestear a casa. Ele não percebe que aquelas mesmas fezes mudaram de cor desde da última vez. Ele não percebe que está com vermes. Ele não percebe que terá problemas sérios por causa disto.

Ela grita novamente e novamente pede um filho. Ela diz que nunca teve ninguém como ele. Ela diz que precisa assentar a cabeça. Ela diz que já rodou demais e que nunca soube realmente o que queria. Ela diz que ele é agora o seu porto seguro. Talvez com ele possa encontrar um lugar de paz em sua alma. Ela diz que já realizou cinco abortos. Ela diz que ele passa muita segurança a quem quer que seja.

Ela não percebe que o olhar daquele homem não está ou nunca esteve onde deveria estar. Não percebe que o bolo que estava assando no forno já queimou e solou. Não percebe que alguém está a apertar a campainha da porta faz tempo, não percebe a tal meleca que está quase caindo da ponta de suas narinas avermelhadas. Não percebe que deixou o ferro ligado, não percebe que aquela marca de caixa de fósforo não serve para fazer o tal churrasco, não percebe que o tal ferro ligado está a queimar a tábua de passar roupa, não percebe que o tal fósforo aceso queimou o papel próximo ao tal recipiente de plástico que lambeu rapidamente.Ela não percebe que o gato já se atirou pela janela.

Eles não percebem que a janela tem grade. Não percebem que a porta está trancada e a chave está perdida em algum lugar. Não percebem que os vizinhos estão a berrar do lado de fora do tal apartamento. Não percebem que a síndica gosta de troca de casais. Não percebem que o porteiro é um pervertido que gosta de jovens de até dezesseis anos. Não percebem que a cozinha já foi tomada pelas chamas. Não percebem o fato de que Prometeu errou ao roubar o fogo celeste.

Eles se olham demoradamente e começam a rir. Sabem que o fim está próximo e fazem o que tem ou o que deve ou não dever ser feito.Eles sentam no substantivo concreto chão de mãos dadas. Pegam, do verbo pegar, duas caixas repletas de correspondências, as tais duas caixas de papelão nas quais guardam as lembranças dos entes queridos.

Eles rasgam uma a uma e conversam sobre os tais entes queridos. Já decidiriam sem decidir que vão embora ali mesmo. Pegam outras caixas e queimam documentos de toda sorte. Pegam a conta de luz que ainda não foi paga e também a queimam. A conta de telefone absurda, eles também a queimam impiedosamente. Eles ligam,no verbo ligar, para os amigos mais e mais chegados. Marcam sucessivamente encontros no final de semana. Planejam um jantar com as respectivas famílias. Eles sempre gostaram de fazer planos na certeza de que nenhum deles seria concretizado. Ela, que queria um filho, encontra-se bem agora na sua insanidade. Nunca conseguiu, no verbo conseguir, fugir de si mesma.

O fogo que agora se alastra rapidamente. Eles se levantam e abrem a janela.A campainha que cessa. Eles se abraçam e se acariciam e tossem de forma intermitente. Ela sente algo estranho correndo pelo corpo. Ele sente algo estranho correndo pelo corpo.

Rasgam, no verbo rasgar, as respectivas certidões de nascimento. Observam agora, com desmedido prazer, a ação precisa do tal fogo sobre a mobília daquela casa. Eles rasgam, no verbo rasgar, a cópia do processo no qual saíram vitoriosos na justiça. Rasgam os talões de cheque. Jogam pela janela os cartões de créditos com o limite estourado. Jogam pela janela o retrato dos pais. Jogam o retrato dos amigos e todos os livros possíveis e imagináveis. Jogam pela janela as contas de luz, água e telefone pagas em dia. Jogam pela janela a tal taxa de incêndio que foi também paga em dia. Jogam pela janela as caixas de leite ainda ainda na validade. Jogam as caixas de sticks de frango ainda na validade. Jogam a caixa de Chickenitos ainda na validade. Jogam pela janela a tal caixa de suco ainda na validade. Jogam pela janela o frango comprado na padaria com farofa e molho. Sentem vontade de sorrir e de chorar e de urinar e também de defecar. Sentem vontade de sentir qualquer coisa que desconhecem.Eles agora se beijam sofregamente e urinam e defecam e sorriem e choram e se misturam a isto tudo num ritual assustador. Eles jogam perfume sobre a urina e sobre as fezes e se lambuzam, do verbo lambuzar, com as mesmas. Eles enchem o tal balde com água que deve ser aspergida sobre qualquer um que se atreva a arrombar aquela tal porta. Eles jamais foram à igreja na idade adulta.As aulas de catecismo na infância encontravam alguma valia agora.Eles decidem rezar um pouco, mas não conseguem fazer o que pretendem. Ensaiam o ato de contrição, mas param no meio. Tentam mais duas outras orações, mas também param no meio. Discutem a postura de Pilatos em relação ao evento da crucificação. Lavam compulsivamente as mãos no banheiro já bastante avariado.Acendem, no verbo acender, dois ou três ou quatro ou cinco cigarros e os jogam por aí como se fossem eles mesmos alguém. Eles olham para aqueles cigarros de carne e osso que os convidam para a tal pausa benfazeja antes do fim. Procuram o tal bule de café por causa do cigarro. Nada encontram desta vez. Sentem vontade de fumar ainda mais. Sentem vontade de pegar o tal chicote no quarto. Ela é a primeira a lanhar as costas daquele seu homem. Ele gosta disto. Ele é o primeiro a lanhar as costas daquela mulher. Ela se sente plena assim.

Ele pega a tal faca na tal cozinha. Ele corta os pulsos. Ela pega a tal faca na tal cozinha. Ela corta os pulsos. Ele e ela lambem o sangue que escorre de forma precisa. Eles se beijam de forma ensanguentada. O gosto de qualquer coisa como o ferro. O gosto de qualquer coisa como qualquer coisa. Sentem a tal vontade de rir e de chorar e urinam de forma compulsiva no chão.

Ela mostra a língua para ele. Ele mostra o seu membro rijo para ela. Ela ameaça pegar a tesoura. Ele goza com a ideia de ter o membro cortado. Ela goza com a ideia de sair com aquele membro na bolsa por aí. Ele goza com a possibilidade de não mais ser capaz de procriar. Ela goza com a possibilidade de se matar por causa disto. Ele e ela gozam com a possibilidade real do fim. O fogo que já toma o apartamento inteiro. Ele e ela ardendo naquele espaço qualquer, sentados no chão.

Eles se vão como os documentos, como a mesa, como as caixas de papelão como o conjunto de xícaras de chá, como o sofá herdado de um bisavô qualquer, como as águas de um rio ou como as águas do mar ou como os detritos atirados na lata de lixo da esquina.

Nada mais são agora do que parecem ser: Matéria soterrada no infinito, fumaça e mais fumaça e poeira e pó.

© 2007 João Ayres