Domingo na Serra

DOMINGO NA SERRA

Em meio às serras escrevo. Tento conectar-me à Internet, mas as montanhas me impedem de teclar. Meu cunhado dirigindo ao meu lado diz da impossibilidade do meu modem funcionar nesta região montanhosa. Retruco. Insisto e vejo a mensagem na tela para uma nova tentativa de conexão. Tento, tento. Paro para ver algumas fotografias. Mostro à minha irmã, sentada no banco de trás com sua filha e minha mãe, as fotos das buganvílias lá de casa mais que vistas por ela. Impressionante como a fotografia pode nos mostrar tudo que vemos todos os dias como se fosse a primeira vez. O ângulo para sempre eternizado enquanto durar um arquivo virtual fascina no seu desenho intacto de pixels num momento de luz. A fotografia é realmente essa arte de eternizar instantes aprisionados em suportes materiais ou imateriais. Dizem: “Uma imagem vale mais do que mil palavras”. Uma imagem integra-se a mais de mil palavras. Uma palavra remete a mais de mil imagens. Daí gostar tanto de fotografia e de literatura. Estou com uma câmera aqui no meu colo dentro de uma mochila apoiadora do meu laptop. Preferi teclar a fotografar. Às vezes sou meio egoísta. Quero os registros visuais só para mim. Os olfativos também. Não dá para imaginar o cheiro gostoso de ervas frescas vindo das matas marginais trazido pelo vento camarada. Preferimos até desligar o ar condicionado para sentir melhor a brisa amiga. Não vou te enviar nenhuma foto e nem uma mostra de aromas num sache. Prefiro imaginar você imaginando o caminho percorrido até a casa da tia Luzia. Agora a conexão deverá ser possível. Já chegamos ao Carmo.

Finalmente chegamos a Cidade Bela. Passamos pela matriz de N. Srª do Carmo na Praça Getúlio Vargas. Descemos ao Valparaíso. Um ciclista em amarelo vinha capitaneando o caminho. Atravessamos a ponte. Meu tio manobrava seu caminhão. Acenamos e seguimos em frente. Viramos a direita contornando a pequena praça com banco de marmorite e jardineiras sob as árvores de galhos chorões. Já estávamos na rua Joaquim Simões de Araújo. É uma rua como as outras da localidade. De casas simples de pé-de-direito baixo, cobertas com telhas de fibrocimento ou colonial (nas casas mais antigas). Todas as habitações são simples, inclusive a casa da minha tia. Tem paredes caiadas de branco e uma varanda frontal fechada por um portão de grades que a separam da rua. Nessa varanda há uma mesa redonda de vidro e plantas penduradas. Nos fundos há uma outra varanda onde almoçamos e, normalmente, preparam-se os pratos de cozimento mais demorado ou mais gordurosos. O quintal tem bananeiras, uma jabuticabeira, um pé de carambola e um pé de acerola, além de um caramanchão de chuchus e várias flores (entre elas uma orquídea de que gosto muito). O muro é relativamente baixo e deixa ver um campo atrás onde se joga futebol limitado por um rio terminado em cachoeira. Do campo avista-se ao alto parte do Centro da cidade e o Morro do Estado. Do lado oposto fechando o vale há outra elevação verde circundante que acompanha a trajetória do rio após a sua queda em cachoeira. Algumas árvores bastante grandes e belas vão crescendo quanto mais próximo da cachoeira se chega. Em suma, Valparaíso é uma aldeia plana de gente simples, em cujo vocabulário não há referência à própria palavra aldeia, mas sim a loteamento. Portanto Loteamento Valparaíso ou somente Loteamento como chamam lá em cima no Carmo, o Centro da cidade. Esse local possui uma praça cercada por fícus podados e canteiros de flores e folhagens. Ao fundo, reina soberana a Matriz contígua ao cemitério da Irmandade. Nas laterais, dois hotéis, o Banco do Brasil, pequenos mercados, padaria e um ateliê de artes plásticas. Toda a cidade é um local bastante agradável e que deixa saudades a quem vai embora descendo a avenida de jovens palmeiras imperiais imponentes como as montanhas que ainda temos de enfrentar logo após o rio.

Tão logo as palmeiras acenam agradecendo pela visita, entramos no abraço das árvores meio retorcidas. Avança-se por essa senda verdejante até Influência, onde já avistamos o Rio Paraíba do Sul, vindo de São Paulo rumando ao Norte do Estado. É um rio quilométrico que separa o Estado Fluminense do Estado Mineiro num leito repleto de ilhas arborizadas em águas barrentas. Deixamos o rio seguir seu caminho de serpente para a direita e vamos para a esquerda rumo a Teresópolis. A estrada é muito bonita. Na realidade, antes de chegarmos à cidade da Imperatriz Teresa Cristina, entramos nas terras da cidade de maior nome do Brasil – São José do Vale do Rio Preto. O carro vai serra acima. São curvas indescritíveis com paisagem de tirar o fôlego.

Estamos numa região antiga do relevo brasileiro. São dobramentos que formam um relevo de formas suaves e harmoniosas em vales de um verde estonteante contrastante com o céu de tons geralmente claros manchados de branco de nuvens diáfanas presas nas paredes rochosas. Magnífico.

Continuamos subindo até a localidade chamada Mirante do Soberbo. Local que faz jus ao nome. De lá avistamos uma imensa planície com a Baía da Guanabara ao fundo. Espetacular. Do alto avistam-se vários municípios da região metropolitana. Entre eles a minha São Gonçalo e a própria capital carioca. A imagem é orientada pelo Dedo de Deus a direita apontando o céu. Avançando-se mais na estrada, há uma lanchonete fantástica donde se tem visão privilegiadíssima dessa formação rochosa com o nome do Criador. Sua assinatura está na beleza de todo o cenário.

Continuamos o caminho no clima tropical de altitude entre beijos da serra vermelhos, rosas, roxos, de todas as cores. Dos paredões brotam cascatas voluptuosas num rumurejar branco vestindo a rocha quase negra de um véu líquido vivificante.

Choveu muito depois do Dedo de Deus. As águas vinham de todas as direções literalmente. O precipício era um mar de bruma. O asfalto uma única lâmina líquida e os espaços a frente, trás e laterais formavam uma só cortina d’água. O carro mantinha-se a custo nesse mar suspenso. De repente, de meio das águas surgia um imagem. Não era delírio. Nem deuses das águas. Eram vendedores de doces oferecendo balas de cana, cocadas e suspiros. O dinheiro é levado pela janela e lavado pela chuva. As balas de cana entravam e junto doces suspiros. Um regalo para a viagem.

Tudo que sobe tem de descer. A serra se acaba em Magé. Entramos na cidade num caminho lateral da via férrea. Agora era só planície praticamente. Num determinado ponto da estrada. Dormi profundamente. Meu laptop estava guardado e a janela aberta. De repente um carro desgovernado arremessa uma quantidade imensa de água em cima de mim. Acordei assustado e com os óculos todo molhado. Minha mãe no banco de trás estava ensopada e com o cabelo todo desfeito. Minha sobrinha de três anos rica desbragadamente. Seu pai não perdeu o controle, mas também não resistiu. Minha irmã aproveitou para fazer algumas piadas. Sequei-me improvisadamente e me lembrei de continuar a história. Às vezes, precisamos de um choque para recomeçarmos. Aquelas águas frias dentro do carro ficaram quase polares quando fechamos as janelas e ligamos o ar condicionado. Meus dedos de gelo tinham de se aquecer e assim fizeram no calor da palavra.

Publicado em Contos Cardeais pela editora Mosaico de Palavras em 2010.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 06/06/2010
Reeditado em 07/06/2010
Código do texto: T2302489
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