O carteiro.

Nos últimos tempos, desde que aquele incidente acontecera, dera para deixar quadros inacabados pela casa.

Naquele dia frio e chuvoso de inverno, mais uma vez Valeria deixou-se ficar à janela esperando o carteiro.

As vidraças choram como chora Valéria.

Mais um dia esperando notícias.

Na rua poucos transeuntes passam apressados, cabeças baixas sob guarda-chuvas que gotejam com abundância.

Todavia, ela permanece indiferente ao movimento externo. Sua mente fervilha de lembranças de um tempo longínquo, que permanece vivido demais.

Tempo de amar e ser feliz com seu amor. Naquelas mesmas calçadas, caminharam de mãos dadas, pelas ruas e parques da cidade amaram-se e foram felizes.

Filha única, fizera vestibular para pedagogia, mas logo mudara para artes plásticas e desde então, entre pincéis, tintas e telas vivia.

Dava aulas particulares.

Como terminar algo se ela estava inacabada?

Como juntar os elementos de um quadro com a alma partida?

Enquanto lágrimas quentes escorrem suaves pela face muito pálida, lembra do dia que saíra da casa dos pais, desolados e impotentes diante de suas esquisitices.

Não toleravam mais viver no caos em que se transformara sua casa, com quadros atulhando quase todos os espaços vazios.

Preciso preencher espaços! Gritava sua alma ferida.

Fora ela que decidira alugar aquele apartamento.

Não queria atrapalhar a vida de ninguém.

Lembra que a mãe chorando acusara o sumiço de Marcos como a causa de sua mudança.

De que adianta isto agora?

Tudo é passado.

As lembranças intercalam-se com o olhar quase desesperançado que ela lança à esquina de sempre. É ali que surgirá a figura familiar do carteiro.

Ainda por cima hoje ele está atrasado, pensa ela.

Mas logo o coração acelera, chega à garganta. As mãos suam e suas pernas mal a sustentam.

Mesmo com a bruma do dia chuvoso, ela vislumbra a figura calma e magra do carteiro que caminha na direção de sua casa.

Seu coração faz eco com as gotas de chuva na vidraça.

O mundo parece petrificar-se neste instante mágico e esperado.

Mas que nada, mais uma vez, o carteiro quase constrangido, fita a moça triste na janela e segue seu rumo.

A sacola está cheia, mas nada para aquele endereço.

Pobre moça, pensa o carteiro.

Dias depois, soube que foi encontrada morta entre as tintas, quadros, e sangue.

Todos os elementos finalmente preenchidos em uma combinação macabra.

Jeanne Geyer
Enviado por Jeanne Geyer em 04/06/2010
Reeditado em 10/02/2021
Código do texto: T2299812
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