LAURINHA NÃO ACEITA MORRER I

Fiquei ali, petrificado, um medo novo descontrolando o pensar, tremulando minhas pernas, o suor a se intensificar, obrigando-me a segurar com as duas mãos o caixão, a evitar risco de cair, e ainda quase a fraquejar, uma senhora aproxima-se e colando ao meu lado, apóia a mão em meu ombro, como a reconfortar-me, e baixinho em meu ouvido: “São os desígnios de Deus!” Eu ainda voltado para aquele rosto pálido onde a vida esvaiu-se, ainda segurando a respiração, o mau hálito da gorda senhora ainda pairando no ar, ela insistindo, a murmurar: “Ninguém sabe explicar... coitada, tão jovem”! Isso justamente quando inalei o ar e fui forçado a aspirar aquele cheiro repugnante, obrigando-me a disfarçar um lamento, devolvendo o ar de imediato, ela ainda a segurar-me com força, imaginando a dor indizível pela perda irreparável. Ainda atônito vejo que a moça está em pé no outro lado do caixão, olhar fixo em mim, forçando meu olhar a direcionar de imediato para o caixão, ela ali, repetida, deitada, inerte, o pálido azulado já a se acentuar. Ainda pasmo, afasto-me instintivamente da desagradável senhora, com o intuito de tomar fôlego, quando ela chama-me a atenção, apontando para um senhor vestido de branco, na faixa dos cinqüenta, óculos escuros na testa calva, sentado à esquerda da sala, a conversar baixinho com uma magra senhora de preto, lenço a mão, o entra e sai se intensificando, já a denotar o fim do velório. Ao voltar o olhar, ela aponta a direção da saída quando aproveito e me encaixo na fila a sair daquela sala abafada, carregada de maus presságios, circundada por inúmeras coroas de flores. Quando aspirei o ar puro da área externa lembrei-me de imediato painho, quando um dia desses comentou ser um contrassenso o uso de flores em velório, a elogiar um poema de um conhecido, Cyro – Eu e as Flores, se não me engano –, o qual critica o mau uso das flores, as quais não deveriam combinar com esses momentos tristes.

Enquanto seu caixão era carregado pelos parentes, o sol causticante a apressar o passo daquelas setenta e poucas pessoas rumo ao buraco aberto duas quadras abaixo, sentamo-nos próximo a lápide do outrora ilustre Deputado Luís Eduardo Magalhães, eu engolindo a seco, constrangido, sem palavras, ainda a não entender aquela nova situação. Será que realmente estava acontecendo tudo aquilo ou iria acordar e cair na real? Qual força levaria alguém até um local como aquele a ficar sentando dentro de um cemitério em sepultura alheia, debaixo de um sol esturricante, ao lado de alguém que acabou de morrer e estava naquele exato momento sendo enterrado? Quem sabe por um fim a toda essa situação a se intensificar a cada ano e que ainda estava sem explicação, a fervilhar ainda mais meus pensamentos, atordoando toda minha lógica de existência. Como diria painho: “Todos em dado momento tentam se apegar a Deus, o qual para políticos só existia quando estavam em campanha”.

– Buscarei ser breve, Leo! Tenho que seguir minha missão... – a voz da garota sai quase inaudível, forçando a aproximar-me um pouco mais, um arrepio a correr por todo meu corpo – não se assuste porque você é meu único meio de defesa e sei que ainda pouco entende da situação. – Crio coragem e tento buscar seus olhos, os quais estão distantes, perdidos na movimentação ao redor do seu caixão.

– Além de alguns amigos mais próximos, todos os meus familiares estão aqui... E dentre eles existe um que carrega a terrível força do mal! – Aproveito a pausa e sigo seu olhar a visualizar ao longe o caixão já a sumir no buraco recém aberto, acompanhados de vários gritos femininos sofridos e soprados continuamente até nós. – Lembre-se da importância de sua vida, a qual a partir de hoje está entrelaçada ao meu espírito, necessitando de seu único apoio para encontrar a tão merecida paz. – Abaixo o olhar e fico aguardando continuar seu relato, o suor se intensificando, já a descer por entre as pernas, tensionando de imediato o meu semblante.

– Aquele senhor que lhe apontei, o qual estava de branco é Doutor Renato Vasconcelos, meu tio e um ginecologista bastante conceituado na região. Ele é casado com minha tia, irmã de minha mãe. Tem um único filho homem e para todos é o benfeitor de toda a família, sempre ajudando a quem precisa de apoio, principalmente financeiro. Dizem dentro da família que enriqueceu fazendo abortos de mulheres de classe média e alta, o que pratica até hoje de forma clandestina. Mas isso não vem ao caso... – Ela emprega força na voz ao pronunciar a última frase quando viu que levantei a cabeça pelo súbito interesse no assunto.

– É ele o meu assassino! – Dessa vez não deu pra segurar e mal ouço a frase naquela voz de lástima que de pronto levantei-me, encarando-a com firmeza, me condoendo ao fixar o olhar nas lágrimas a descerem em profusão pelo seu rosto pálido, enquanto os amigos entoam em uníssono a música “A nossa idade” do grupo Titãs. – Ele tirou-me o direito de viver! – Fiquei ali por uns bons minutos, a última frase ressoando e os olhos já marejados, ainda pensando no que dizer a reconfortar-lhe, quando dei por mim sobre aquela situação por demais inusitada, onde não haveria palavras ou argumentos a mudar a realidade.

– Ouça Leo, tive minha parcela de culpa por nunca imaginar um resultado igual. – Ela continua o relato, já recomposta, indicando com o olhar a lápide quente, para acomodar-me. – Ele foi meu ginecologista e desde os treze que iniciou um ritual bem arquitetado a me envolver que quando dei por mim, já passava os finais de semana em seu apartamento, tudo por usufruir da piscina e da comodidade do seu prédio de luxo. E aos poucos fui me seduzindo pelo dinheiro e suas facilidades, de tal maneira que quando me desvirginou ainda aos treze, o fiz de bom grado, como a recompensá-lo por todo aquele apoio. E cheguei até os quinze naquela coisa de nem me interessar por namorado, mais envolvida nos estudos e em passar os finais de semana com meus tios, a passear em shoppings, ganhar presentes e curtir bons restaurantes. Sem falar nos finais de semana ensolarados que muito curtimos na casa de praia em Guarajuba. Tinha momentos que me imaginava filha daquela família polida, a renegar meus pais, que mal ganhavam o de comer.

– E assim fui levando a vida, ninguém nunca a desconfiar de nada. O auge de tudo isso foi o passeio na Disney que ele me deu logo depois do festão de debutante, a causar inveja em muita gente. Todo o problema foi quando me apaixonei... – Ela muda o tom na voz enquanto ficamos os dois a observar os amigos e familiares saindo cabisbaixos, passando rente a nós, quando meu braço toca no seu e aquele contato gélido me traz a realidade, no exato momento em que o tio assassino passa amparando aquela mesma senhora magra, que aparentava ser a mãe da garota, a qual mal conseguia andar.

– Quando Victor apareceu em minha vida foi que descobri a armadilha sem retorno. Eu ficava os finais de semana presa naquele prédio, proibida de vê-lo, meus pais apoiando de tal maneira que chegou um ponto que quase enlouqueço. E a me libertar, me sentenciei. Disse-lhe: “Se não me ajudar conto tudo para mainha! Tudo!” No ato ele me disse: "Calma Ana Laura. Faço tudo do seu jeito". Ele deu a entender que mudou, aceitando a presença de Victinho no playground. E ainda aceitou sua presença na festa dos meus dezesseis, isso no prédio dele! Nem imagina quanta coisa boa vivi naqueles meses... – Sua voz se embarga e eu nem me mexi, a não atrapalhar o momento, já a imaginar toda a situação de dependência com aquele animal a lhe manipular.

– Mal se passaram dois meses e umas tonturas foram se acentuando. Ele dizia que estava me alimentando mal, que não era nada. Cheguei a pensar que estava grávida, quando os vômitos se iniciaram, mas sentia algo estranho, como se minhas forças estivessem aos poucos sumindo de mim. Um dia desmaiei em plena aula e quando ele me encaminhou para os exames, deu tudo normal, a idade a única culpada dos transtornos dentro de mim. E nada podia ser feito sem o consentimento dele. Era o Deus na família. Tudo ele encaminhava, pagava, deliberava, solucionava. E todos nele confiavam. E até eu, em momento nenhum, imaginei que fosse capaz de fazer o que fez. – Nisso ela se levanta e segue o olhar mais uma vez em direção a sua sepultura, eu a enxergar somente três homens vestidos de cinza e um deles trazendo um carrinho repleto de utensílios utilizados no fechamento da cova.

– É chegada a hora. Escute bem, Leo! Espere um mês até assentar a emoção e vá a meus pais. Diga-lhes tudo que lhe contei e peça para exumarem meu corpo e seguir os procedimentos. Vão constatar que ele me envenenou. Veio me drogando aos poucos, por quase um ano. Diga-lhes que os amarei eternamente e o quanto estou arrependida em ter me afastado deles. E não esqueça: diga a painho que ainda aos treze ele fez muitas fotos minhas em várias posições, e também uns três vídeos no flat que ele tem na Barra. Está tudo no laptop dele. Diga-lhe para acionar a polícia com cautela a evitar que utilize de seu poder para fugir. Só depois de preso estarei vingada e livre para seguir meu destino. Obrigada por tudo. Adeus Leo!

RAbreu
Enviado por RAbreu em 04/06/2010
Reeditado em 04/06/2010
Código do texto: T2298667