LAURINHA NÃO ACEITA MORRER
Ainda não sei o que eles ambicionavam: se me castigar nessa coisa gratuita da incompreensão de adultos ou se realmente achavam que colégio público amadurece a quem novamente foi reprovado sem qualquer explicação. Se eu era infantil para minha idade, como estavam sempre a afirmar, e fazia coisas absurdas a merecer castigo, tapas e pelas costas muitos empurrões, o erro estava em mim que mal conheço da vida o traçado ou deles, que já vivenciaram essa maldita etapa e não sabem me ajudar? E quando falava que algo estranho acontecia dentro de mim eles estavam muito ocupados a se preocuparem unicamente com suas vidas e muitas contas para pagar, querendo na verdade que tudo estivesse em perfeitas condições e sem qualquer tipo de afetação. Logo, mal os olhos se abriam e já estava correndo a me aprontar e não perder a primeira aula porque minha irmã mais nova, sempre privilegiada, era a primeira em tudo em todos os dias, a começar pelo banheiro. Sei que o Portinari é um dos dez melhores colégios particulares daqui de Salvador e sei que me sentava ali naquela sala cheia e gelada com o interesse de aprender. Mas como e a quem explicar as imagens que povoavam minha mente, levando-me continuamente a lugares distantes, resgatado muitas vezes pelos colegas mais próximos, quando não por um ou outro professor mal intencionado, a me ridicularizar com perguntas cujas respostas nunca estariam por lá? E toda vez que mainha voltava das preocupantes reuniões, aproveitava para desatar os nós dos problemas sempre no momento do jantar, o risinho irônico já estampado no rosto de Luana, eu com os olhos grudados no prato a nem arriscar enxergar o duro olhar de painho, a resmungar por entre a mastigação: “Tem jeito não. As letras, definitivamente, não entram na cabeça desse moleque!” E foi assim, a azucrinar meu juízo, que a comodidade de um colégio de classe média a poucos metros de minha casa no Costa Azul converteu-se em desconforto diário, a começar pelo ônibus que tinha que pegar a me deslocar para uma Estação da Lapa a quase quinze quilômetros de distância; e, naquele sol escaldante, obrigado a subir várias e várias escadarias até chegar ao espaçoso e liberal Colégio Central. E lembrar que acordava uma hora mais cedo que de costume e logo depois do almoço, quando ficava no quarto a estudar, visto que o castigo me afastou o computador – Luana a se esbaldar –, era pelo sono, sempre derrotado. “Desculpe filho, seu pai disse que esse é o melhor colégio público da capital. Passe de ano que tudo se resolverá.” Essa, a mesma desculpa quando pouco mais tarde estava a me acordar, toda penalizada, a sentir o quando me afetava a nova situação. Esse mesmo olhar recaía sobre mim quando do colégio retornava, rosto avermelhado e suado, a blusa toda ensopada, sempre para o almoço, atrasado.
Quando completei dezessete os novos costumes já estavam incorporados e abracei com volúpia aquela liberdade nunca esperada. Faltando aula ou não, não existia reunião e todo o assunto dado já estava no cérebro, mastigado, que mesmo frequentando pouquíssimas aulas, em todas as provas beirava a nota máxima, que mal acabado o primeiro semestre, já especulava: “Como era fácil passar de ano em colégio público!” E assim segui meu curso, as novas amizades restritas a Leandro e Márcio, os quais, ao invés de bola e surf, viajavam em funk e pagode e por mais que pobres, só usavam bermudas da Mahalo e adoravam filar aula para gastar o da merenda na Lan House. Aproveitava o embalo e os acompanhava na empreitada e logo me enjoava e os abandonava, a sair vagando sozinho pela Joana Angélica até desembocar na Piedade, onde a televisão filmava em alguns dias da semana pobres desaparecidos, onde pessoas de todo tipo se aglomeravam, a sonharem com a tão esperada e repentina fama. E muito fiquei na Avenida Sete a olhar aquele povo todo a zanzar, muitos para lá, outros para cá, buscando o pouco dinheiro gastar. Em poucos meses desbravei toda a região, da Sé ao Terreiro e daí ao Pelourinho, o Lacerda muitas vezes desci e subi e lá em cima ficava a baía a admirar, imaginando em uma ampla lancha naquele lindo mar sair a singrar. Até que um dia, no início da Carlos Gomes, perto do cine Bahia, mal degustara o segundo pastel de queijo regado a coca-cola, uma voz se acentuou e disse-me com firmeza para que em frente seguisse, o medo esquecesse, pois todos iriam se ajudar.
Como falar daquilo que se desconhece? Do nada veio aquela estranha sensação, a quinta vez sentida nesse mesmo mês, ânsia e angústia antecipando conclusão, eu engolindo todo esse sofrimento com obstinação. Mediunidade anímica e até glândula pineal li e reli por vários dias desse ano, naquela mesma Lan House onde Márcio apostava picolé de amendoim com Leandro, a ver quem perdia a aposta dos jogos os quais disputavam. E me concentrava a estudar para entender de que mal seria possuidor e o que poderia acarretar de risco para os meus e até mesmo a mim. Quando cheguei lá no âmago da epífise, aí foi que desisti, a não pirar. E mesmo assim só iniciei essas leituras porque professora Valda ficava a viajar em minhas esquisitices e um dia desses em que estava mais avoado e em meu mundo, bem perdidão, mandou-me aguardar e dando-me um papel dobrado, disse: “Quando tiver um tempo pesquise sobre esses temas. Vai achar interessante”. Para ser sincero eu não achei interessante. Gostava das coisas que eu podia entender sem muita dificuldade e nem gostava de entrar nessa coisa de gente que ouve e fala o que não vê ou vê o que os outros não estão a enxergar. E foi assim que cheguei ao Campo Grande, a bela praça de grandeza avantajada e descobri que ali ficava o Teatro Castro Alves que por duas vezes no castigo, perdi show e peça de renome. Comprei a água mineral mais para disfarçar meu medo, apesar da suadeira a encharcar a blusa branca do colégio. Fiquei ali como se a qualquer momento alguém viesse a mim, a indicar o caminho ou me direcionar para algum lugar onde estivesse ocorrendo a tão esperada reunião que eu tanto temia um dia partilhar. Já saciado, peguei o restante e molhei rosto e cabeça e depois de duas sacudidelas, a mesma voz feminina se manifestou, assustando-me por completo, e enquanto equilibrava-me no meio-fio, num justo recuo a não ser atropelado, carinhosamente pediu-me que prosseguisse, eu ainda naquele receio se deveria ou não dar sequência a tudo aquilo.
Fui invadindo o acidentado e antigo bairro da Federação mergulhado nos negros pensamentos das profundezas sonolentas do triste pensar e só dei por mim quando já tinha percorrido um bom pedaço e bem em frente ao Santo Amaro, em uma pausa profunda para respirar, fiquei a relembrar o dia em que mainha espalhou sobre a mesa todas aquelas fotografias e em meio a risos e lembranças, montamos um grande e personalizado álbum, somente com minhas imagens, sequenciadas, ela sempre a elogiar esse limpo e organizado hospital onde tive o privilégio de nascer. Ainda não sabia, mas sentia que era para seguir adiante e subi penando a íngreme ladeira, os carros naquele tráfego intenso ainda no meio da manhã, buzinaço irritante a demonstrar a impaciência de seus motoristas. Ainda estava a tomar fôlego, o suor a escorrer pelo rosto, obrigando a passar a manga da camisa no olho esquerdo, já a arder com o líquido aquoso que escorreu e não deu para ser abortado, quando um calafrio percorre todo meu corpo, ao visualizar alguém em minha frente, mão estendida, como a guiar-me para o tão adiado encontro. Ela devia ter uns dezoito anos, branca de negros e lisos cabelos, rosto pálido e olhar tristonho, e de pronto a segui, ela andando ao meu lado ainda cabisbaixa, para só então dar-me conta que entrava no cemitério do Campo Santo, e quando sustei, deu-me a mão e gentilmente disse: “Venha, Leo!” E assim, íntimos naquela estranheza, entramos no velório da sala dois, repleta de gente triste e chorosa, algumas pessoas conversando bem baixinho logo na entrada e, esquivando-se, levou-me diretamente ao caixão, a tampa de madeira escura em pé ao lado com uma imensa coroa. E fiquei ali, ainda dando-me conta que somente através de uma força estranha, acima do meu querer, como se para mim aquilo fosse o melhor a acontecer. Busquei seu olhar desejoso de segurança quando descubro não encontrar-se mais ao meu lado, algumas pessoas olhando-me com aquele olhar de quem está a interrogar, a não saber de onde sou ou quem seria. Respirei fundo, ajeitei melhor a mochila nas costas e debrucei-me a olhar com mais detalhe o corpo inerte repleto de flores, já a visualizar o vestido creme com pequenos corações em vermelho quando de imediato empalideço, ao enxergar aterrorizado que deitada naquele lúgubre caixão encontrava-se aquela mesma garota que há pouco estava ali ao meu lado.