Os arredores do lugar, pequenos bosques de frondosas árvores e chão limpo, obrigavam-nos à sensação de caminhar por dentro do silêncio, de vez em quando fragmentado pela leveza do arfar de galhos e cantos de pássaros. A tarde dormia enroscada nos galhos, embalada pela brisa amena. Loooouuuccccaaaaaa! A palavra curta e de estendido som, desconfortável, ecoando no meio das árvores altas que guardavam a frente da casa, provocava um arrepio intenso e o mesmo medo do medo de morrer. Todos em Taverá sabiam que quem muito se aproximasse da casa antiga, de chão batido e janelas sempre fechadas, ouviria o gemido trêmulo a cintilar no ar: loooouuuccccaaaaaa!

A louca se chamava Leocádia. Parecia saída de um redemoinho e ali plantada – rua do arvoredo número um – na casinha simples, no meio do bosque, à beira do rio que vinha serpenteando da serra no colo do bananal. Só da outra margem, o rio se deixava exposto ao sol e ao banho, guardando distância entre o caminho da escola e o quintal da casa um. De lá dava para ver o pomar e os canteiros verdes, bem cuidados, de Leocádia. "Sá menina Cadinha corre cá, que vou te enfiá a mão! Deixa os moleques e entra, ordinária! Já te disse que homem não presta, vadia! Era a mãe. Naquela posição, com o braço quase a arrastar pelo chão, coluna torcida e a dor que vinha da orelha até o sabugo do pé, sentindo os dedos quentes da mão forte a puxar, só podia trincar os dentes macerando os olhos que não deixava molhar. Quantas vezes! Tantas, que decorou para o resto da vida o timbre e as palavras. Por fim, nem doía mais.

Horácio e Guilhermina, não. Já tinham aprendido e nem precisava mais ordenar que cumprissem seus destinos de burros de cargas e de cabeça. Era fácil encontrar Horácio com sua calça de risca de giz, tão surrada quanto sua botina e camiseta, carregando pelas ruas o cesto de palha pelo braço, cheiinho de verduras frescas. Guilhermina, um dia saiu carregada por Horário, enrolada no lençol, que nem prestava mais para o cemitério. E foi ele que levou a mãe, também, com ajuda do coveiro. Já era de noite e a casa ficou vazia feito um copo cheio de ar. Mas a voz dela parecia pregada nas paredes de taipa, nos cabelos, pelo milharal afora. Podia cortar tudo fora, pentear, lavar, que não saia. Depois, Horácio se foi sem dar até logo e nunca mais voltou.

Leocádia era diferente. Bem mais nova, mocinha ainda, embrenhava-se na folia pelas ruas estreitas de Taverá, às escondidas, sem ver noite, sem ver dia. Os pés pinicavam, comichavam, borbulhavam como se cheios de água mineral, de antiácido, bastava chegar o dia, a hora ali, do carnaval. No meio do barulho não ouvia a mãe. Só depois. “Vadia!” “Desavergonhada!” Não fazia mal, era carnaval, fantasiava-se de alegria, pois que ela sabia que baiana já era de nascença; índia de antepassado e bailarina de destino. Não havia diferença, não era esse melhor do que aquele.

Mas não era mocinha só de folguedos. Passados os dias de brincadeiras, como se um véu roxo caísse sobre seu mundo, curvava-se à dor. Especialmente à dor que gotejava em cruz, em terços, em sinais e motivos, em culpas e em santificadas intenções. Era quaresma. Então, sangravam os pés, queimavam as mãos debaixo da cera ardente das velas e pelas pedras pontiagudas nas longas caminhadas das procissões. “ Anda sá menina ruim, sô. Ô praga, nem por Deus cê larga a vadiagem, moleca!” Então, vinham os festejos de meio de ano, que não eram muitos e quase todos ligados de certa forma à igreja. Leocádia reservava o dia para a obrigação santa e à noite, estava lá, dançando na festa da padroeira da cidade ou na quermesse ou na feira de bordados, ao som da banda. Se bolero, marcha, valsa, não importava. Se tivesse par, dançava. Se não tivesse, dançava. “Vadia, vadia, cê não cansa não? Já disse para não se meter com os moleques, sua disinfeliz! Miserável! Homem não presta, cala esse fogo, desavergonhada!” Chorava não. Às vezes o sangue manchava os dentes amarelados e ela sentia aquele gosto quente misturado com raiva e saliva.

Casar, não casou. Não achou quem suportasse tanta feiura. E Leocádia, coitada, era uma mulher feia. Estranhamente antiga, estranhamente solitária, estranhamente quieta. Só a música era capaz de fazê-la sair, se deixar ver. Ainda mais depois que perdera os irmãos. Ninguém dava atenção à inocente. Ela e um mosquito pousado, por merecimento, teriam direito a um gesto vago de repúdio. E só.

Naquele dia de Reis... Foi um morrer em vida, a queda da cadeira com a corda no pescoço, um apagar de todas as luzes. Todas as palavras, de repente, urravam ao entorno de seu mais próximo mundo como uma sinfonia magistralmente regida: mãe, casamento, amigo, namorado, marido, família, parentes... Nada em que pudesse se esconder ou se amparar. O futuro era passado e ela ali, no presente solitário, surpresa, imprevisto. Pianos, oboés, violinos, tuba e flautas, cadenciados, crescendo, crescendo... De repente, o mais absoluto silêncio. Era só. Ninguém que a segurasse pela mão, ninguém que a levasse no colo, ninguém que com ela choramingasse, cansasse, dormisse, que apagasse a última lâmpada. Loooouuuccccaaaaaa! Gemia de voz aguda e lancinante e pensava na mãe.

Dia de Reis. Uma onda de vida, gostosamente acalorada, entrou por suas narinas e ela não teve como conter o impulso: quebrou a barreira e se lançou no agudo azul do dia. O rapazinho a olhou de lado. As senhoras, sentadas no banco da praça, intrigadas. Receio algum. Se tivesse medo dos olhos do mundo, não seria ela, apagar-se-ia como um risco torto, um desenho malsão, uma lufada de vento.

"Vai ser hoje! Tem que ser hoje!" Passeou pelas ruas com seu vestido cinza e sapatos pretos. Os cabelos, um tanto oleosos, partido ao meio emoldurava um rosto magro com poucos, mas profundos vincos. E sobre o vestido, o colar de contas douradas, em duas voltas, que acendia ainda mais o batom vermelho-sangue sobre os lábios finos e empanturrados. As bochechas magras, quase nenhuma, mostravam-se com orgulho, sob um borrão de ruge. Depois de desfilar pela avenida, parou de frente ao presépio arrumado na praça e, ao lado do Menino Jesus se ajoelhou. Admirava as imagens uma a uma, absorta em ternura, prece e cantos, enquanto as enfeitava com as florzinhas roxas que tirava do singelo buquê.

“Ô senhor dono da casa ai, ai
Nós viemos avisar ai, ai
Que nasceu o Deus Menino ai, ai
Que o mundo vai salvar ai, ai...”

"Senhor meu Deus me ajuda, pois que tem que ser hoje, tem! Preciso saber como é. Unzinho, só!" A voz saía mansa e cheia de amor.

A folia passou e até que fosse embora, Leocádia cantou e dançou. Um brilho sorrateiro piscava estreladamente nos olhos negros da quase senhora. "Vai ser hoje, mãe!" À tardinha, caia na praça. Um sereno fino e frio cambeteava no ar. Da pequena bolsa ela tirou o lenço, dobrou em forma de um triângulo, cobriu a cabeça e com um nó debaixo do queixo prendeu as duas pontas do tecido de algodão preto. O relógio da praça quase marcava dezoito horas. Ela tomou o rumo da igreja.Terminada a missa o padre saiu e retornou algum tempo depois, quando ainda restava certo rebuliço no salão iluminado da igreja. Foi então que Leocádia veio feito um gato, olhos cravados na presa. Passou pelas pessoas que conversavam com ele e sem sequer pestanejar, agarrou-se nas desprevenidas mão e boca do vigário, que prendeu a respiração, arregalou os olhos sem saber o que mais fazer, exibindo a vermelha marca do beijo inesperado, enquanto Leocádia saia correndo da sacristia para a rua, arrastando o grito como se conduzisse um balão a gás detido no ar pela força contrária do vento: loooouuuccccaaaaaa!

Quem tinha saído da igreja voltou às pressas e quem ficou, depressa foi atrás de Leocádia. Por que e para que voltaram ou saíram, ninguém entendia. Mas cadê Leocádia? Entra e sai de quartos e salas, casa de vizinho, escola, estrada, hospital, mato denso, rio afora, nada! O padre, desesperado, não sabia o que fazer.

O tempo passou e ela era quase esquecida, quando os uivos começaram a ser ouvidos pela cidade: loooouuuccccaaaaaa! Era Leocádia. De novo, entra e sai de quartos e salas, casa de vizinho, escola, estrada, hospital, mato denso, rio afora, nada! Caçaram Leocádia, e nada! Mas, de longe, ela vigiava com olhos de gato que espera o rato. Vasculhava o dia a dia daquela gente, que ia e vinha, num caminhar de formigas – súditas fiéis de rainha faminta – com abusado e torcido sorriso, umedecido pela saliva ácida de um amor esfolado vivo. Vinha vivendo no padre que lhe aparecia nas folhas de alface, nas pencas de banana, no brilho da lua na água do rio. Era tão bonito! O cheiro de incenso, a voz grave cantando, a oração vibrante do hino que mexia lá, bem mais para dentro do coração. Um amor comprido e tão forte que vencera a voz que só ela ainda ouvia. “Vadia!"

Mas, tinha aquele açougueiro, tal Antônio, que oferecera o sobrado da praça para moradia do padre. Fremia entre dentes aquele nome, para ela, mais de bicho do que de gente. E tinha a polícia com o carro parado dia inteiro ali e até na porta da igreja.

Não fosse o tal Antônio, não fosse a polícia... "Bem dizia a mãe: homem não presta!”

Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 27/05/2010
Reeditado em 27/02/2011
Código do texto: T2283763
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