Produção do Tempo - Décimo Oitavo Dia

1) Uma Personagem

Ao longo do percurso da narração, como se a história pudesse ter sido vivida. Mas não foi. Apenas imaginá-la. Ou foi. Escreveu para viver. Cumprir um horário rigoroso, ao fim do dia, ao fim da tarde, ao entardecer, quando anoitece, ao entrar naquela película sombreada no declinar do dia. Escreveu para viver, viver um acontecimento breve, nada de grandes apoteoses existenciais, a simples presença de um momento vulgar. Chegar e partir. Lembro-me de mim, os navios saíam do porto, passavam a barra e chorava ao ver desaparecer o que desaparecia, apenas isso, como se tudo fosse a história do que parte, do que não volta, os navios mergulhados para sempre no fundo longínquo do mar fundo. E voltava no outro dia ao cais, às pedras da saudade, ao som melancólico de um destino marítimo. Escrever com os dedos o que seria a memória no futuro, escrever o que alguém viveu, escrever sem deixar de sentir, sentir a possibilidade de sentir o que não se sente, sentir apenas por escrever. Viver no interior da narração as personagens inventadas, nem saber se foram inventadas, qualquer aspecto importante que ficasse para lembrar mais tarde – e ao lembrar se tornasse de facto importante.

2) Uma Personagem

Ao fim do dia, voltava a lembrar para viver. Havia um jardim na infância que ficava na noite dos sonhos. Plátanos esguios e fontes. Aves que se ouviam num corredor de nuvens. Sentava-me num banco vermelho como este vermelho do banco de um outro jardim. Mas o jardim do sonho só era possível sonhá-lo por existir na realidade, a minha realidade em sombra por dentro de dias onde o Verão se prolongava sem fim. Um muro branco e portões verdes ladeavam aquele lugar de plátanos esguios e fontes e aves e sombras e tardes longas e bancos vermelhos, o sonho de tudo que era possível sonhar por ser sonho. Um dia, talvez quando a noite desliza já num simulacro de imagens, fiquei só no jardim, os muros tornaram-se mais altos e os portões verdes fecharam-se hermeticamente, senti a alucinação das aves sobre as fontes, a respiração dos plátanos era mais intensa, na relva verde cresciam palavras como pétalas em canteiros de flores coloridas. Não sei se li este sonho, não sei se sonhei este jardim, se escrevi a hipótese de este jardim não ser um sonho, de procurar um jardim assim como síntese de todos os jardins que existem e - não sei.

3) Uma Personagem

E continuava a narração. Ouvia o transe da voz como se fossem os cadernos de Rilke. Um café em Paris quando aparecia André Breton. Descendo as avenidas pela névoa do horizonte. Qualquer cidade foi um lugar de encontro por que se escreve numa folha branca para não voltar a esquecer. Fosse o mar ou um jardim ou as hélices que filtram do ar o vento e vamos no entusiasmo com os clarins da noite. Agora. Aqui passam as horas da recordação entre as imagens reais e a realidade imaginária, sem nenhum limite a uma história que pudesse ter sido. O que se vive dentro das paredes de um quarto, ao convocar apenas um estímulo que do interior abriu as grandes vias que rasgam o infinito pelos múltiplos sulcos da memória. Muito mais numa narração quase sem fim. Uma manhã clara, as tardes brilhantes da existência, discutíamos a felicidade e a solidão, os surrealistas e o romantismo, os escritores alemães quando a noite era longa. Haverá ainda outra hora na metafísica das sensações, saberei as palavras exactas enquanto a vida continua e a morte é sempre a clareira de um último sentido. As cortinas corridas da janela, é assim - agora.