O FORASTEIRO
Cheguei na fazenda. Fabiano não esperava que eu aparecesse naquele dia, ele estava sentado sobre o cavalo ao lado de um cachorro vagabundo. Disse a ele que o serviço estava pronto. Ele quis provas, entramos na casa, liguei para a pensão, atenderam, liguei o viva voz. Seu Amarildo disse que acabara de haver um tiroteio no meu quarto.
—A moça, a dona Julia chegou aqui e como o Visitante me instruira — ("instruira", eu que ensinei ele a falar assim, seu Amarildo era um pernóstico de nascença.) — Entreguei a chave do senhor para ela.
—Certo.
—Ela estava nervosa, subiu e ficou esperando no seu quarto. Depois apareceu um rapaz cabeludo e nervoso perguntando sobre a moça, disse que era o namorado e que iria entrar de qualquer maneira. Liguei para o seu quarto e a dona Julia ainda estava lá, contei sobre o sujeito e ela deixou ele entrar. Depois de alguns minutos ouvi os disparos.
Fabiano colocou a mão no gancho.
—Aqui esta o resto do pagamento. Você é muito bom. Quando me indicaram você não acreditei que fosse tão bom.
Peguei a maleta.
—Não vai conferir? — disse Fabiano.
Não gostava daquele sujeito, mas gostar das pessoas que contratavam os meus serviços não fazia parte do negocio. Fabiano era agora o único herdeiro da metade das terras daquela merda de cidade. Quando seu pai morreu deixou a herança entre os dois filhos, Fabiano e Julia a mais velha, trinta anos, uma porralouca como dizia Fabiano, estava fodendo os negócios, que iam de criação de gado ao cultivo de cana. Julia gostava de gastar todos os proventos e tinha uma certa predileção amorosa por peões e subordinados. Quando a conheci não vi nenhum traço da personalidade e comportamento que Fabiano me descrevera, o puto havia mentido para querer me convencer a pegar o serviço, como se o meu trabalho fosse movido por impulsos passionais.
Mandei logo o puto calar a boca e joguei o preço do serviço. Ele achou caro, mas aceitou logo. Ele disse que tinha que ser rápido, sem suspeitas pro seu lado e queria que parecesse um acidente de carro ou algo assim, eu disse a ele que ia ser do meu jeito.
Me hospedei na pensão do seu Amarildo no mesmo dia, ele me chamava de Visitante, a cidade estava em festa, havia uma romaria de cavaleiros e as pessoas andavam pelas ruas de bota de couro e chapéu de varias cores.
Foi numa quermesse que conheci Mara, ela era a única que não trazia chapéu na cabeça, ela estava na barraca de tiro ao alvo, ganhou um urso enorme e pediu a minha ajuda para carrega-lo, bebemos cerveja, discutimos vários assuntos, ela disse que era de São Paulo, professora de português, por falta de emprego na capital estava dando aulas no interior, queria saber o que eu estava fazendo naquele fim de mundo, eu também queria saber, mas menti, disse que era agrônomo essas coisas, saímos outras vezes, ela fazia varias perguntas, parecia estar me interrogando. Mas eu não podia perder tempo, tinha que terminar logo o serviço.
Alem de conhecer Mara nessas festinhas, pude também conhecer Sandro, um cara meio esquentadinho. Nas três noites de festa ele brigou em duas, estava saindo com Julia, irmã de Fabiano. Quando ele cortou o supercílio, eu que fui dirigindo até o posto medico, Julia não sabia dirigir, só saia com o motorista da fazendo e quando saia com Sandro era ele quem dirigia o carro dela, ela já tinha me visto na fazenda falando com seu irmão, me ofereci para leva-los ao posto médico. Sandro havia brigado na festa, porque, segundo ele, um sujeito "muito do atrevido" estava dando em cima de Julia. Na maioria dos casos o motivo de tanta violência era esse, Sandro era muito ciumento.
Depois desse incidente, fiquei amigo dos dois. Sandro me disse que se um dia Julia o traísse ele a matava.
Julia era muito amiga de dona Amélia, esposa do seu Amarildo e por isso ela sempre aparecia na pensão. Um dia dona Amélia deixou escapar que Julia estava grávida, que o irmão ainda não sabia, que ela estava morrendo de medo da reação dele.
A coisa ia ser mais fácil do que eu imaginava.
À tarde fui tomar sorvete com Mara. Ela era viciada em sorvete. Depois fomos até a sua casa. Uma casa simples de três cômodos, igual a todas do bairro, portão de madeira, essas coisas. Ela fez café e depois começamos uma discussão besta sobre pinto.
—Uma vez dei uma garrafa para uma mendiga e ela trocou por um pinto, criou o pinto e esperou ele crescer, quando já era praticamente um frango, ela matou o pinto e preparou para a filha doente.
—Aqui eles não falam pinto, falam pintinho. Pinto os homens usam para nomear outras coisas.
—Que outras coisas? Pinto é pinto.
—Tipo... Você sabe.... Olha aqui o meu pinto... Chupa o meu pinto, mané. Usam pinto no lugar de pau, caralho, cacete. Entendeu?
—Pinto é tão depreciativo, quero dizer, um animalzinho tão frágil. Quando eu era criança minha mãe dizia pipi.
—Pipi é muito feio.
—O meu pipi é tão bonito que você vai ver e dizer “Parece o pipi da Judy Gallard”
—A Judy Gallard tinha pipi?!
—Não, mas se ela tivesse seria assim como o meu. Esta vendo?
Telefonei para Julia, queria falar com ela na pensão, eu disse que sabia que ela estava grávida, ela ficou nervosa no telefone, quis saber se o irmão já sabia, desliguei.
Peguei o meu carro que estava em frente à pensão. Logo adiante, percebi estacionar um chevrolet velho. Haviam me encontrado, enfim.
Antes de sair, eu disse para o seu Amarildo que se Julia aparecesse me procurando era para ele entregar a chave do meu quarto a ela que ela sabia do que se tratava. No caminho à fazenda de Fabiano, percebi que ninguém me seguia, peguei o celular e telefonei para Sandro, eu disse a ele que sabia da gravidez de Julia, ele quis saber quem havia me contado, eu disse que o filho era meu, que eu estava na cidade para assumir o meu filho, ele sabia que Julia vivia indo para Ribeirão Preto por causa dos negócios, e a historia mirabolante que inventei sobre Julia e eu, dos encontros fortuitos, as viagens inesperadas, a possibilidade do filho não ser dele era grande, eu disse a ele que estava ligando só para avisa-lo que agora Julia estava comigo, na pensão, e íamos viver juntos, desliguei.
Pelos meus cálculos Sandro iria a pensão e mataria Julia antes mesmo que eu chegasse à fazenda para pegar o resto do pagamento.
Segui com o carro em alta velocidade. Uma nuvem de poeira atrás de mim.
—Quando me indicaram você não acreditei que fosse tão bom. Nas pequenas cidades os forasteiros são facilmente percebidos, alem de outras dificuldades. Mas você age duma maneira insólita que quase me enganou ao seu respeito.
Depois de receber o pagamento do serviço com Fabiano, fui procurar Mara. No centro da cidade, a maior agitação, carros de policia cruzavam as ruas ignorando os sinais. Passei em frente à pensão e segui reto.
—O que deu em você?
—Por quê?
—Nunca me buscou no colégio.
Ela queria tomar sorvete.
—Fiquei sabendo do que aconteceu lá na pensão, experimente esse sorvete, dizem que Sandro chegou e deu dois tiros na cabeça da Julia, gosto estranho, não é? parece que ela estava grávida, experimente de novo, nem parece avelã, Fabiano é que deve estar feliz, agora vai ficar com a parte de irmã e Sandro que ia fazer parte da família e abocanhar um pouco dessa grana esta preso. Dois numa cajadada só.
—Estou indo embora.
—Como assim? Embora para sempre? Embora da cidade? Por favor, fica.
—Não posso.
—Por quê?
—Meu serviço já acabou e tenho uma mãe doente na capital.
—Mãe doente o caralho, é tudo mentira.
—Como você sabe?
—Eu sei.
Na esquina, um carro parou na calçada e eu e Mara ficamos olhando para o chevrolet velho. Eu sabia que estavam no meu encalço desde Brasília. Só não imaginava que o oficial que me caçava todo esse tempo fosse uma mulher.