BRINCADEIRA DE CRIANÇA
Ontem estive em um aniversário chique lá no Cidade Jardim, bairro de rico aqui em Salvador, onde com lindos meninos brinquei a correr, estórias fiquei a ouvir, gargalhei com o palhaço até o fim, coração quase a sair pela boca de tanto no pula pula saltar, em muitos outros brinquedos estive a suar e depois de tanta felicidade a sorrir, vejam que delícias comi até enjoar: brigadeiro, cajuzinho, casadinho, moranginho, sonho de valsa, olho de sogra, quindim, docinho de nozes, bombom de uva, até chegar a hora do bolo cortar e eu convidada ao lado da minha nova amiga ficar, enquanto os parabéns todos estamos a cantar. E para ajudar gostoso bolo a descer, todo tipo de refrigerante tomei e em nenhum momento para descansar, eu parei.
Soraia tanto gostou de mim que me chamou para com ela, dormir. E depois que todos foram embora, em sua casa me pediu pra ficar. Em seu mundo assustada fiquei, perdida a nunca imaginar que existisse realidade assim. Depois de banho tomado, alfazema pelo corpo espalhado, cabelos bem penteados e pijama de coelhinho vestido, uma lasanha inteira nós devoramos, a coca-cola sem querer arrotamos e, depois dos beijinhos de boa noite e muito, mas muito carinho, seus pais então se afastaram e sozinhas então nos deixaram, quando em seu imenso quarto entramos, a sorrir nos entreolhamos, para os presentes, enfim, estarmos a abrir.
- Menina, pare de sonhar! Levanta daí! Tá chegando outro caminhão. Venha logo sua mãe ajudar...
Dói quando abro os olhos. Não, não é o sol a me cegar. Estou sedenta, suja e suada, mas isso é meu normal nessa vida amargurada. Tenho muita sede, mas é de uma vida que não seja muito sofrida. Quanto me ponho a chorar, não é sol e chuva a me machucar. Nesses meus sete anos de vida, acompanho minha mãe, muito a contragosto, todos os dias, menos domingo, aqui em Canabrava, na solidão de meu lixão. Como viram, todas as minhas brincadeiras moram nos meus sonhos. Aniversário só a festejar na ilusão do meu pensar. Aqui é trabalho. E duro. Tá vendo aqueles meninos ali? Também não podem brincar. Igual a mim, só nos intervalos sentam no chão sujo a sonhar. Mas, pouco mais de quinze minutos chega novo caminhão e quando descarrega, você sabem, não há regras. É cada um por si. E é nesse momento que recebo o desejado carinho. Quando me apodero de comida da boa ou algo que dê algum dinheiro, ela passa a mão suja e repugnante em minha cabeça uma duas vezes e diz: “isso filha! Hoje teremos banquete.” Fico tão feliz. Por isso, quando ela me tira das brincadeiras dos meus sonhos eu logo saio correndo e me jogo de imediato nos grandes e fedorentos sacos que antes eram quase todos pretos e hoje aparecem de muitas outras cores. Não gostei só um dia quando muito apanhei. Foi quando vi aquele saco plástico vermelho e grandão, destacado naquela multidão de sujeira, e eu de pronto nele pulei, e tão festeira fiquei, ofegante a lembrar, que na desembestada carreira, uns vinte meninos ultrapassei e, por alguns minutos ali permaneci, parada, agarrada, fervilhando em imaginação. E o baticum em meu coração aumentou, eu ainda pensando a cismar: “quanta coisa boa ali estava a morar...”. E minha maior alegria era plantar difícil sorriso na cara sofrida de mainha, tão nova a bichinha e já toda enrugada. Mas não foi assim. Para tristeza minha só tinha restos de hospital, tanta coisa feia e fedida, exalando odor de bebida, que logo estava a lembrar de cachaça e painho, quando ainda em casa morava e minha mãe todo dia apanhava e eu, sem nada poder fazer, ficava num canto jogada, baixinho a choramingar.
Essa minha companheira aqui, um pouco suja eu sei, nem sei de quem amiga, era. Aqui mesmo eu a encontrei, já sem um braço, um olho fechado e roupas um pouco rasgadas, mas bem mais melhoradas que as minhas. Única confidente e igual a mim vivia sempre triste e sozinha. É a ela que tudo, eu conto. Ela sabe que um dia meus olhos vão se abrir e não mais verei tanto lixo a revolver; nossos amigos não mais brigarão a dividir comida com grandes urubus; nenhum vizinho estará sua mulher a massacrar, tão logo eu ouça a porta se fechar; nunca mais verei menina levar tapa e puxão de orelha só porque queria estudar e não saiu com os outros, a esmolar. Vai chegar o dia em que não vou mais apanhar só porque queria, por direito, brincar. O dia em que essa amiga querida apareceu algo em minha vida se transformou, pois em meus sonhos alguma coisa se acendeu. Foi meu dia de maior alegria. Pena que é rosada, de cabelo liso, boneca de branca. Queria uma de minha cor, inventada há pouco tempo, vendida por capenga o camelô, na estação da rodoviária, que só vejo quando vou com mainha e a turma lá da favela, todo domingo rezar na nossa Igreja Universal, quando damos muito do pouco que ganhamos pra Deus tornar esse meu sonho real.