SECRETA
Em tempos sem internet e limitação de informação, qualquer frase proferida com tema desconhecido leva o cidadão a ficar na dúvida e, se o assunto for complexo, escabroso ou vexatório, ele guarda pra si por toda a vida, ou aguarda a oportunidade para tirar a prova. Vejam o que se sucedeu com Fabiano, futuro grande amigo, que se fez empregado em uma loja minha, ainda século passado, por mais de cinco anos, lá no grotão da Bahia.
Morador em um sítio distando uns seis quilômetros da sede, próximo ao povoado do Cobé, o jovem esguio e de olhar inquieto e curioso apresentou-se a mim, com toda polidez, indicado como alguém astuto, honesto e preparado. Como Aparecida demitiu-se, a viajar, dei-lhe de imediato a gerência da loja. O negócio era uma selaria - Anarriê, o nome -, localizada próximo ao mercado, com frente em duas portas. Na verdade, era mais chegado a uma butique, a vender, além de selas e seus acessórios, roupas e sapatos para crianças, homens e mulheres. Pintada em cores vivas, toda decorada, com espelhos a dar amplidão, com largas vitrines e sofá em forro espesso, se transformou de imediato em ponto de encontro de garotas sonhadoras, a animar o garanhão recém-separado, obrigando-me a ampliar o leque de novidades, introduzindo logo após uma vitrine no centro da loja, expondo variadas bijuterias, em adornos para todas as áreas e gostos, como diziam: em acessórios da hora. Como viajava constantemente a praticar vendas entre o nordeste de Minas e o extremo sul da Bahia, o visitava de mês em mês, encontrando-o sempre prestativo, alegre e bonachão, a agilizar cobranças e contatos com uma honda 125. Com o passar dos anos tornamo-nos fraternos amigos, ele mais gerente ainda, a dominar toda a região, anotando os pedidos e acionando fornecedores para que o produto chegasse a tempo de mostrar-se aos outros em corpos sarados, em formato de chapéus, bonés, fivelas em ouro e prata, botas de cano longo, cintos country, e outras coisas mais, porque a cada mês tinha uma cavalgada, argolinha, vaquejada ou festas similares na região. Era o motivo para a galera sair por aí, sempre nos trinques, a buscar as novidades de cada cidade ou distrito. E o Secreta, nome carinhoso como eu tratava Fabiano, afável que só, mal despontava na cidade, fazia-se companheiro para farras e curtições, visto que ficava no máximo uns dois dias a cada mês, quando retornava sempre com novidades, seja em produtos lançados em outras regiões, ou em atualizações do que acontecia em outras paragens. E num desses bate papo, lá no alto da Santa Cruz, o lugar mais alto e aprazível da cidade, juntamente com mais dois amigos comuns presentes, disse-lhe lá para o meio da conversa, que tinha encontrado uma garota linda, japonesa legítima, em Nanuque, cidade encravada no Vale do Mucuri, no nordeste de Minas, e que depois de dois encontros casuais, arrisquei e a levei ao hotel Lamercan, onde estava hospedado. "Qual foi minha surpresa ao constatar que sua púbis era forrada do pelo mais liso imaginável e sua vagina era longa e atravessada, perpendicular as das ocidentais."
“Oxe! E isso pode?” Indagou-me o Secreta, buscando captar jocosidade na situação. Mostrei-lhe o quanto fiquei encabulado com aquela cena, necessitando umas cinco doses de whisky goela abaixo para entrar no clima, além do que, a temperatura da região naquele mês de maio oscilava entre oito e dez graus Celsius. “Rapaz, iniciei uma pesquisa tentando compreender a razão de não ser tão divulgada tal situação, mas não encontrei muita coisa, não. Acho que tentam esconder pela cultura fechada que é o Japão. Só sei que é fato!”
E o Secreta ficou a matutar, Helder e Matheus a me olharem em interrogação, todos buscando o gracejo a quebrar a tensão do lugar. “O povo não tem o olho repuxado?” Questiona Helder, a dar ênfase a novidade pitoresca. “Lá não é tudo ao contrário? Agora mesmo já é dia!” Matheus aponta as estrelas lá no céu, enquanto solta uma baforada do cigarro, a fumaça a criar uma aura de mistério ao ambiente. “E não vale Nissei ou Sansei. Tem que ser japonesa legítima!” Exclamo enquanto vou rapidamente ao carro pegar o litro de campari a abastecer os copos já vazios. A quase oitocentos metros acima do nível do mar, a temperatura marcando dezoito graus, o vento uivando a sibilar, trazendo o frio para uns quinze graus Celsius, fazendo-nos procurar abrigo próximo à capela de São Judas Tadeu, onde já o assunto era outro.
Passados desse episódio uns cinco anos, o Secreta, de gerente transformado em proprietário do mesmo negócio e eu, deixado o ramo, já há ano e meio sem voltar em minha saudosa cidade, acabei aparecendo para passar o natal com meus familiares, mãe, tios e primos que ainda moram em Mundo Novo, a pequena cidade, a qual era segundo o poeta Wilson Aragão: “...uma poesia nas quebradas do sertão...”
E lá estávamos nós, mais uma vez em nosso retiro, naquele alto delicioso, em frio prazeroso, a visualizar a nostálgica cidade lá embaixo, entre os morros, e viajar por entre a névoa, com as montanhas verdejantes a circundar toda a área, a Serra do Orobó ao longe, a indicar a direção para a cidade de Ruy Barbosa. Tinha uma galera. Umas trinta pessoas, de todas as idades, os adultos a bebericar o vinho da ceia, a se avizinhar, aquecendo corações nostálgicos, quando o Secreta se aproxima, e me chama a parte para conversarmos. Nisso também se acerca Matheus e logo depois Thiago, outro amigo-irmão. E conversa vai, conversa vem, cada qual a atualizar os seus feitos, entre um gole e outro, o vinho a ampliar os extremos, as risadas mais soltas, os assuntos mais picantes e escancarados, desejos segredados, fofocas jogadas ao vento, quando do nada, o Secreta me encara, aponta-me o dedo e esbraveja: “cabra! Tu me deixou doido por quase cinco anos. Não era besta de perguntar a esses malandros e sair de otário. Fiquei foi sozinho, me lascando em dúvida!” Nisso ele dá um passo a frente, ainda de cara amarrada e, em terreno acidentado, quase perde o equilíbrio, o dedo em riste ainda apontado para mim. “Ô Secreta, tá viajando? Rogê é broder!” Tenta interceder Matheus, achando que a quantidade do vinho alterou o comportamento do amigo. “Você é outro cabra safado! Ajudou a me enganar. Pois seus bestas fiquem sabendo que três meses atrás, quando fui a São Paulo, soltei uma baita nota pra transar com uma japa. E legítima!”
Até hoje, dizem na saudosa cidade, as gargalhadas nunca cessaram, a sibilar ao cair da noite, ecoando junto ao vento uivante...