[A Catarse e a Máquina de Datilografar]
Vejam, vale a pena... é por aqui, ó; http://www.recantodasletras.com.br/poesias/2270128 — é o site da “Meus Momentos” – isto é, pelo que li, ela é os “Meus Momentos”, quero dizer, que a ela pertencem momentos de uma candura como esse que a gente lê aí, nesse endereço. E para muita gente, essa é a visão, a sensação causada por uma antiga máquina de escrever. Mas não para mim!
Aí vai um contraponto que não é bom, nem ruim... é disgusting, é cáustico, mas não o bastante, não na medida que eu gostaria que fosse! E para ser mais contrariante ainda, digo que gostei de ser lembrado dessas máquinas... gostei: é catártico lembrar dessas velharias!
As coisas em si mesmas, nada são — nosso olhar é que lhes cola um sentido que as torna boas ou más. Eu gosto dessa possibilidade sempre aberta de ter uma opinião destoante da minha. Não “me gosto”, nunca tive tempo para isto! Aliás, não faz sentido essa frase — gostar de si — para quem escapou à força, a poder de esforço intenso da condição humilhante em que nasceu e cresceu – pobreza, para quem tem os olhos abertos, para quem foi ensinado a olhar longe, é sim, humilhante – pois é, não me gosto, e não gosto de espelhos... cada tem sua estrada!
Pois bem... diferente da “Meus Momentos”, não tenho essa suave visão das antigas máquinas de escrever. Eu as vejo com olhos duros, amargos, ressentidos... são, para mim, um forte símbolo do que experimentei de opressão, e de sofrimento. Eu não consigo enumerar as vezes em que elas me causaram males — danos psicológicos que deixaram traços fundos em meu espírito. Começo leve, dizendo do quanto sofri ao digitar longos trechos da minha dissertação de mestrado, pudesse, eu a escreveria à mão! Felizmente, no tempo da minha tese de doutoramento, já havia, nos USA, os processadores eletrônicos, e tive a maciez de um teclado de terminal de computador para eu digitar o meu trabalho — se bem que lá, eles até aceitariam uma tese escrita... à mão!
O pior do símbolo vem de longe: em criança, eu sofria muito, muito quando escutava o matraquear dessas malditas numa repartição pública qualquer! As horas que um mal-nascido como eu espera numa salinha mal-cheirosa enquanto a má-vontade, o rancor de um funcionário datilografa um documento... a minha angústia acompanhava as mãos rápidas do silencioso funcionário do alistamento militar, que, enquanto datilografava o meu futuro, não me dizia nada do resultado do maldito alistamento – estaria eu livre para continuar meus estudos... ou condenado a perder um longo ano? Quem mandou, quem... quem mandou nascer sem terras, sem posses? Ah, essa necessidade de abrir caminho lutando, a faca entre os dentes... ali, naquela salinha, ao som daquela matraca, minha revolta me sufocava!
E mais: eu morava próximo de uma Delegacia de Polícia, e via, sobre as pesadas escrivaninhas, as malditas máquinas de onde saía, escrita, a sorte de um infeliz qualquer. Da rua, e morrendo de medo, eu via os homens de terno de linho, lá dentro, esperando sair o “papel”... eu ouvia o matraquear da máquina de escrever, escutava a campanhinha no retorno do carro; eu engolia em seco, e ouvia ressoar na escrivaninha o tranco que o carro da máquina dava ao retornar rapidamente. Sabia muito bem que a opressão sobre a pobreza, a violência contra os indefesos, contra as viúvas, a prisão injusta estava sendo lavrada ao som daquelas batidas – batidas do demônio, eu pensava — quando eu crescer, eu queimo, eu destruo uma desgraça dessas!
Tanta fúria impotente contra um reles símbolo, hoje substituído por outro dispositivo que escreve a desgraça alheia com mais eficácia e elegância — um microcomputador e uma impressora a laser? Que seja... eu exagero — mas o que fazer se não posso evitar a lembrança ruim que me causa uma máquina de datilografar? Cada um, cada um!
Mais uma catarse – será que há outra cura para este meu mal?
[Penas do Desterro, 21 de maio de 2010]