Eu e os urubus
Amanhece um sol encardido e mendigo pedindo esmolas para o ar seco. O ar - Coitado! – solta pesarosamente a magreza de seu hálito mal cheiroso, sem condições de ajudar o sol.
Eu ando descalço, ruminando o lixo que me rodeia e acaricia os vergões e as rachaduras dos meus pés abertos.
O caminhão acaba de jogar no monturo de imundície a féria do dia. Paro de andar e começo a correr. Corro para disputar com os outros pés descalços e com os urubus os possíveis alimentos escondidos nos sacos de lixo.
Eu e os urubus voamos por sobre os vários sacos espalhados ao acaso. Na ânsia do medo de perder o contato com a comida que se prenuncia, esbarro sem querer nas penas esqueléticas de um dos meus adversários. Ele se afasta um pouco, mas não desiste de conseguir também seu sustento. Ignoro-o por completo e minhas unhas nuas atravessam iguais lâminas cruas os plásticos que impedem o gozo supremo de libertar-me da agonizante fome que me amarra. Meus olhos giram nas órbitas e em todas as direções, atrás de transformar as vagas possibilidades em ganhos reais. Quase não sinto as mãos. Em meio à pressa incontida, elas se deparam com todo tipo de objetos. Espetam-se, machucam-se, sujam-se. Não me importo. Junto com o sangue que as escoriações expõem levanto resquícios e fragmentos da minha sobrevivência: Pedaços de um café da manhã, restos de um almoço e sobras de um jantar. Vou reservando em um saco as agruras da minha luta e o suor de uma fraqueza que teima em manter-se alheia.
O tempo nesse momento se transforma em um desses mísseis de longo alcance. A pressa, por mais que marque presença, acaba por fornecer a sensação de que se poderiam conseguir melhores oportunidades. Se eu fosse um “Super-Homem ou The Flash”.
Da mesma forma que eu, muitos pés descalços se misturam com todo o lixo e deixam-se absorver pela necessidade de revirar tudo incessantemente. Então, ganha quem tiver melhor agilidade, tiver oito mãos ou dezesseis braços.
Não se passaram mais de uma hora que o caminhão foi embora, porém não há mais nada para se aproveitar. Tudo revirado e revisado. Deixo as sobras das minhas sobras para os urubus e me afasto juntamente com os outros pés descalços.
Afastamos-nos um pouco e ficamos em guarda e posição de espera por outro carregamento. Talvez venham outros dois ou três caminhões. Escoro-me em um canto, limpando as mãos sujas nos trapos sujos de uma camisa esburacada que mal cobre minha barriga esquálida. A barriga geme um ruído pálido. Estou com fome, todavia tenho que esperar e me manter firme.
O tempo se arrasta cruel, parecendo uma enorme tartaruga acorrentada que tenta andar e não consegue sair do lugar. A fome continua maltratando.
Os caminhões vieram e a luta se encerrou quando o sol trocou sua roupa encardida por outra brilhante, com luz muito forte. Roupa própria para castigar as peles queimadas dos pés descalços.
Ergo o meu saco, pois é hora de ir embora. Tenho que me recolher e buscar forças para o dia seguinte, se acaso ele vier. Quase não me agüento de fome, enquanto caminho trôpego abrindo trilha em meio aos rastros de lixo.
Demora um tempo, entretanto eu vejo a minha construção feita de papelão, plástico e algumas tábuas. É o meu lar, onde moro. Coloco o saco no chão e me deito exausto. Sinto a maravilhosa frieza da terra aliviando a ardência da minha pele queimada pelo sol. Ficaria eternamente assim, deitado, a esfregar o corpo na terra fria e sentindo o frescor reconfortante. Porém, a fome grita desesperada. Levanto-me e vou comendo o que imagino comível. Não interessa se a comida está estragada ou não, o meu estômago agradece o vazio que vai sendo preenchido e vai saciando a falta de alimento desde o dia de ontem. Não quero me lembrar de ontem. Os caminhões não vieram e não tive nada para mastigar e enganar o estômago. Saúdo feliz a certeza que um dia não é sempre igual ao outro dia. Reconheço que diferente dos outros pés descalços, eu não possuo nem oito mãos e nem dezesseis braços. Contudo, na hora de matar a fome, tenho somente uma boca e não quatro ou oito bocas para dividir a comida. O cantinho onde meu corpo repousa está de bom tamanho.
Não se iguala ao cantinho que um dia fui visitar a contragosto, convidado pelo seu João. O lugar era somente um pouco maior que o meu cantinho e fiquei descrente que seis corpos pudessem se estirar ali dentro. A dor da solidão naquele momento se evaporou totalmente. Preferia mil vezes conversar sozinho e com os urubus que ter que dormir enlatado com uma mulher e quatro filhos. Enxergar em seus rostos a minha fome e a minha miséria. A falta de esperança e a fé em um futuro com um mínimo de dignidade e cidadania. Eu não tinha espelho, portanto não sabia como era meu rosto. Mas sabia como eram os rostos dos outros pés descalços. Sem sombra de dúvida que aqueles rostos eram o reflexo do meu próprio rosto. Rostos sofridos, escaveirados e manchados pelo sol. Rostos envelhecidos precocemente pela fome, pela necessidade e por aquela dura vida que levavam. As crianças também carregavam as marcas da miséria extrema. Se sorriam, sorriam escondido, um sorriso para dentro.
Não agüentaria me enxergar no rosto de uma mulher e nos rostos de prováveis filhos.
Fiquei poucos minutos com seu João e sua família. A vontade de ir embora me invadiu por completo e inventei uma desculpa qualquer. Difícil enfrentar aquela situação. Muito melhor enfrentar a solidão. Minha miséria é somente minha, não a divido com ninguém. Tive muita pena de seu João. Imaginei como seria quando a gente tem que ficar com fome, por causa do caminhão que não veio. Eu tento enganar a minha barriga. Seu João pode enganar a barriga dele, mas o que faz para enganar a de sua mulher e de suas crianças? Deve ser dureza. A mesma dureza que minha pobre mãe enfrentava.
Recordava-me muito dela, lembranças turvas e tristes que estavam sendo apagadas pelo tempo. Lamentava profundamente não possuir uma foto sequer. Minhas imagens nebulosas já não identificam a sua fisionomia. Tragicamente fomos separados um do outro quando eu contava com apenas sete anos.
Havia um bebê recém-nascido, meu irmãozinho. Havia também um pai bêbado e violento, panelas quase sempre vazias e lágrimas nos olhos de minha mãe. Algumas imagens me trazem a recordação da dor da fome e do carinho materno. Ela tentava me fazer dormir com histórias de esperanças. Eu deveria dormir mesmo faminto, ela me dizia, pois quando eu acordasse no dia seguinte teria um pedaço de pão e um pouco de leite para me alimentar. Eu dormia os sonos vazios igual a minha barriga, acostumada àquela situação. O amor dela me alimentava de alguma forma. Percebia que tinha de dormir para as lágrimas pararem de molhar o seu rosto. Muitas vezes fingi dormir, só para não vê-la chorar.
Algumas vezes o milagre acontecia. Quando eu acordava tinha algo para comer. Os vizinhos recobertos de caridade conheciam o drama de minha mãe. Quase oito anos de convivência na favela. Ela veio com o marido e um bebe de colo. Na favela o terreno é de quem chega, basta respeitar o espaço alheio e ganhar a confiança. Conta bastante também a comoção. Quem teria coragem de negar abrigo a uma mulher segurando um bebezinho nos braços? Assim minha mãe e meu pai tiveram permissão para levantar um barraco naquele lugar. Em meio a tantos barracos um a mais ou um a menos não fazia diferença. Pelo menos é o que pensavam os moradores de lá. Entretanto a prática alertava claramente que todos estavam enganados. A favela estava abarrotada de barracos e praticamente inexistiam lugares para que se erguessem outros barracos. Aumento de moradias trazia aumento de problemas sanitários. O esgoto exibia-se nas ruas pequenas e estreitas. Crianças desavisadas ou desobedientes como eu, desafiavam o perigo com paus que mergulhavam no conteúdo de cor e odor impróprios para brincadeiras.
Nesse ambiente eu nasci, creio que pouco menos de um ano após a morte de minha irmãzinha, o bebê de colo que mamãe trazia quando viera parar na favela. Uma doença fulminante a atacara. Meningite, dizera o médico. Nada pode se fazer para salvar a vida daquele ser que mal havia começado a viver. Sorte dela! Não precisou presenciar a tragédia que aconteceria mais ou menos oito anos depois. Eu fui escolhido e trago comigo a ferida aberta dentro do meu coração. Esquecer, jamais! Morrerei sentindo essa tortura. Se existir vida após a morte e eu puder ver minha mãe novamente... Se ela estiver bem, aí quem sabe. Quem sabe eu possa extipar de vez um ódio seco que nunca me abandonou.
Minha mãe era uma santa. Eu escutava os vizinhos comentarem. A paciência que ela possuía com o marido bêbado e desempregado, passando fome e sendo maltratada, só mesmo tendo uma paciência de santa. Infelizmente a paciência tem limites, até mesmo a de uma santa.
Aconteceu com a minha mãe. Aquele dia meu irmãozinho chorava muito. Acho que de fome. Ela não tinha mais leite para amamentar por causa da alimentação precária que recebia. Quando havia pouca comida, e isso acontecia quase sempre, minha mãe deixava de comer para me dar. A consequência revelou-se cruel demais: Ficou sem leite para amamentar o filho caçula ao tentar salvar o filho mais velho.
Meu irmãozinho não parava de chorar um minuto sequer. Minha mãe estava desesperada. Para piorar a situação meu pai apareceu bêbado e gritando alto dentro de casa. Colocava culpa nela pelo fato do bebê não parar de chorar. Pela primeira vez eu presenciei minha mãe não ficar calada e responder ao meu pai à altura. Primeira e última vez.
Aconteceu tudo tão rápido! Os gritos de minha mãe foram sufocados com várias facadas em seu corpo. Vi atônito ela tentar proteger meu irmãozinho. Não adiantou. Minha mãe e meu irmãozinho foram sendo retalhados sem dó ou piedade por um homem desfigurado pela fúria. Eu gritei. Eu gritei o tanto quanto o pulmão de uma criança de sete anos permitia. Não consegui sair do lugar, somente gritar. Meu pai todo ensanguentado abandonou os corpos de minha mãe e de meu irmão e partiu para cima de mim. Ele ainda conseguiu desferir uma facada em meu braço, mas foi somente isso. Muitas pessoas haviam entrado em nosso barraco, creio que por causa dos meus gritos. Tomaram a faca dele e o empurraram do chão. Fui encaminhado para o hospital.
O corte não tinha sido profundo e eu estava bem. Escutava eles comentarem que o meu pai estava preso e que minha mãe e meu irmãozinho estavam mortos. Desconheciam a existência de parentes próximos e eu seria levado a um abrigo de menores. Ouvia aquelas palavras sem esboçar qualquer reação. Estava vivo por fora, mas morto por dentro. Nada tinha sentido para mim. Nada mais importava.
Fiquei no abrigo de crianças por oito anos. Aprendi a ler e escrever, após muita luta do pessoal de lá. Eu não queria, porém fui forçado a aprender para eles me deixarem em paz. Não tinha amigos. Não me aproximava de ninguém. Falava apenas o necessário. Não brincava. Minha diversão era ficar sentando de baixo de uma árvore de enormes galhos, olhando para o tempo.
Possuía quinze anos quando me chamaram para comunicar que eu não ficaria mais naquele abrigo. Eu não entendi, porque sabia que sairia de lá somente com dezoito anos.
- Seu pai vem amanhã buscar você. Não se preocupe, ele é agora outro homem. Está regenerado. Tem casa, mulher e dois irmãozinhos que estão te esperando. Você vai ter a sua família de volta. O que acha disso tudo?
Fiquei calado como de costume. Ninguém se importou. Estavam acostumados com o meu silêncio. Saí da sala carregando uma revolta maior do que o meu corpo podia suportar. Quase não conseguia andar. Minha família encontrava-se morta, não a recuperaria nunca mais!
De noite juntei o pouco de roupas que possuía em um saco plástico e fiquei na espera de ver todos dormir. Antes das onze me esgueirei pelos cantos escuros até atingir a porta e fugir correndo como um doido. Não sabia para onde ir. Iria para qualquer lugar, menos morar na mesma casa do homem que se dizia meu pai. O ódio que me consumia não permitia isso. Provavelmente eu me transformaria em um assassino como ele. A mulher falou em uma esposa e em dois irmãos. Lembrei-me de minha mãe. A mulher e os irmãos não tinham culpa de nada. Eu não era um assassino igual meu pai.
Passei muita fome e muito frio. Levei muitas pancadas. Viadutos, rodoviárias, bancos de praças e ruas eram locais que me abrigavam. Quase entro no mundo das drogas. Fui salvo ao presenciar um crime resultante do uso delas. Um rapaz entorpecido pela erva assassinou com uma pedra enorme um outro rapaz que se dizia amigo seu. Um motivo bobo. O morto não quis dividir seu cigarro com o assassino. Por causa da recusa teve a cabeça esfacelada pela enorme pedra.
Depois daquele acontecimento, me mantive o mais distante possível dos moradores de rua que representavam perigo. Ficava no meu canto quieto e silencioso. Se me mandassem sair de lá, saia. Se não dissessem nada, ficava. Não sei quanto tempo morei na rua. Tive que procurar outro rumo quando notei que minha segurança começava a correr perigo.
E aí encontrei o lixão. É o meu lar. Onde sei que viverei até morrer. As pessoas que moram aqui são pessoas de bem, apenas não tiveram sorte na vida, não arrumaram um emprego por algum motivo e como não podiam viver na rua vieram parar no lixão. Nossas casas são feitas de restos de papelão, plástico e tábuas. São poucos os pés descalços que possuem alguma mobília. Nossa mesa é um jirau onde colocamos nossas panelas geralmente velhas e amassadas. Fogão a gás é luxo. Improvisamos o nosso com um latão cortado. Fazemos uma boca para abrigar a panela. Lenha e gravetos é o gás fornecedor do fogo. Isso funciona perfeitamente bem no verão. No inverno é um sofrimento acender o fogo. As lenhas ficam todas molhadas e produzimos mais fumaças do que fogo. No inverno todos nós nos juntamos para conseguirmos sobreviver. Ambos nos ajudamos mutuamente. Achei estranho no início, pois sempre fui arredio, sem querer me misturar com qualquer pessoa. Entretanto compreendi que os pés descalços agiam assim não por opção ou por que quisessem. A necessidade comandava as coisas naquele lixão. Mesmo não gostando tive que me adaptar. Agora eu era um deles. De morador de ruas virei um pé descalço. Conservando o meu silêncio procurava ajudá-los no que podia e de idêntico modo eles me ajudavam. Se respeito é um sentimento, passei a possuí-lo. Se um barraco é dissolvido pela água, seus moradores abrigam a família desamparada. Mesmo não havendo espaço em seus barracos, dá-se um jeito. Existe na comunidade apenas uma família que possui um fogão a gás velho e enferrujado. O monumento de ferrugem é a nossa salvação quando a chuva forte não cessa. Fazemos a vaquinha para comprar gás e todos se utilizam do fogão para comer alguma coisa cosida.
Assim a vida caminha no lixão e eu caminho junto. Não sei quantos anos terei daqui para frente, mas não me importo. Vivo por que tenho que viver. Abrigo o meu corpo nesse barraco e nesse chão batido. Abrigo a minha alma nas lembranças remotas que estão desaparecendo. O presente é o agora, bem sei. Limpo minha boca no trapo de minha camisa e me deito novamente no chão. Meus ossos se aninham na dureza e os meus olhos se fecham para um leve ou profundo sono.
Amanhã outros caminhões carregados de lixo virão e eu e os urubus iremos em busca de alimentos para continuarmos a enganar a fome e driblarmos a morte.
FIM