De morar, tenho cá esse pedaço de chão que me sobrou da divisão dos três irmãos, hoje tudo morto. Nunquinha na vida eu teria dinheiro para comprar nem as galinhas que crio aqui. O compadre Juquinha, que Deus o tenha, é que me deu de presente de natal – o primeiro que ganhei na vida – o primeiro par. Fiquei até desconfiada na época, porque compadre nunca que foi dado a parceria com mulher. Das vezes que aqui em casa se comemorava algum santo e que o Antenor pegava da sanfona, ele ficava com seu pito lá, quietinho, mesmo que a Sofia, companheira e vizinha minha, lhe enchesse de olhos. Ele disfarçava, sentava no caixote, que era mais baixinho, tirava o chapéu e sumia no meio das saias rodadas do povo que ocupava o salão. Essa Sofia, minha vizinha, enviuvou com quatro meninos para criar sozinha. Não tinha ninguém por família. Um dia, depois da missa, quando o santo padre foi embora, a Marlene deu um piri paco e inventou a moda de que Sofia podia mesmo era casar de novo com esse compadre Juquinha. Bem que ela agradou da ideia, mas eles nunca se acertaram não.

Como eu vinha falando, se eu não tinha para as galinhas, muito menos eu ia ter para terra. Meu pai e minha mãe calejaram foram as mãos nesse chão batido. Essa terra aqui é boa, mas de uma solina sem fim. Se um dia o rio seca, como andam falando por aí, aí é que não sei como vai ficar não. Eu era a mais nova dos irmãos, mas nem por isso ficava para trás. Saia madrugadinha com eles e fazia meu serviço. Eles capinavam lá a roça, jogavam fumo para as pragas e o que era recolhido eu ia arrumando nas cestas. Era meu serviço também recolher os ovos das galinhas e por milho para os porcos. Disso eu não gostava não porque fedia muito e me dava enjoo de vômito. Pai vendia o milho que todo dia era recolhido no paiol e às vezes ele moia para vender como canjiquinha. Fora isso o pai vendia verduras e fazia uns biscates nas roças de cana.


Fora nós, minha mãe teve dois que não vingaram. Nem chegaram a ter nome. Naquela época nem se chegava a saber de nada. O menino ia como chegava. Da barriga da mãe para a barriga da terra. Depois de um tempo ela acompanhou eles. Não teve remédio que desse jeito. Nem os chás que dona Clavinha fazia e curava todo mundo. Nem as rezas de dona Maria. Os galhos de arruda murchavam, mas o mal era maior e mais forte. Com a mãe não deu jeito não. Foi um tempo difícil. O pai chegava da roça desanimado, que nem banho tomava. Nem trocava de roupa. Meu irmão mais velho é que cuidava de nós.


Vez em quando vinha aqui a dona Lurdinha, que era madrinha minha. Fazia a comida, ajeitava a casa até que um dia ocupou o lado da cama da mãe. Ficou mais fácil. Meu pai ficou animado e com os meninos crescendo, encompridou a casa com mais dois quartos e um banheiro. O primeiro era lá fora e a gente chamava de casinha. Dona Lurdinha é que disse que não era casinha nem privada, era banheiro. Eu e os meninos rimos de doer quando ela contou isso para gente. Passamos quase a noite toda cochichando e repetindo ba-nhei-ro. Eu via que ela era mais esperta que a mãe. Tinha um jeito sestroso de falar com o pai, dava umas piscadas de olho e, eu sei que ele acabava fazendo tudinho que ela queria. Nas festas a gente ganhava roupa nova, sapato novo, tudo novo. Os meninos passavam goma no cabelo e aí eu que ria, porque ficava os cabelos tudo arrumadinho e duro. Aí a gente ia brincar e o suor misturava com aquele negócio e ficava tudo gosmento. Ah, os meninos xingavam dona Lurdinha, muito!


Com o tempo eu fui para a escola, mas não deu certo comigo não. Até que sei escrever meu nome e ler algumas coisinhas. Para falar a verdade eu até que leio, mas não tenho cabeça para entender. Nem para guardar. O pessoal aí da folia cortou uma volta comigo até eu cantar de cor os versos do Salvador. Salvador, Jesus, o senhor sabe né? Pois é, até nisso foi difícil. E para ir para a escola era muito longe. Quando eu chegava em casa estava com a barriga nas costas e os pés tudo cheio de bolha. De sapato ou sem sapato. Às vezes a gente dava sorte e pegava carona com os carros de boi. Meus irmãos davam até uma folga para os carreiros. Eu vinha era chupando cana para aguentar chegar e comer.


Esse assunto dos meus irmãos eu não gosto de falar não. Me pega uma tristeza danada! Tem mais de vinte anos que não vejo o Romildo. Ele jogava bola que era uma beleza e isso desencravou nele a vaidade de ser jogador desses famosos. E o menino tanto que atentou que o pai, que já estava doente naquela época, deixou ele ir embora. Acho que o pai ficou com medo dele morrer e o Romildo ficar sentido. Adiantou nada, porque o menino despareceu e o pai morreu adiantado de desgosto e remorso. Foi quando nos dividimos a terra e o Alceu vendeu a parte dele e do Romildo e pé na estrada. Um foi procurar o outro. Ai que aconteceu aquela tristeza do Alceu. O desinfeliz matou para roubar ele. Nesse dia que nem gosto de lembrar, me deu uma doideira. Blasfemei, mas blasfemei que só. Durante o tempo que eu viver, se pedir perdão para Deus todos os minutinhos da vida ainda vai ser pouco. Até internada eu tive que ser. O medonho – cruz em credo! – não sabe, parece que se apoderou do meu corpo e das minhas forças que não largava. Precisou de muito homem para me segurar para eu não fazer nenhuma besteira. E o pai que tinha pedido para dar um pedacinho da terra para dona Lurdinha, coitada! Mas eu não desagasalhei ela não. Uma mão lava a outra, né? Ela cuidou de mim, agora eu cuido dela. E ela não faz nada de mal não. Dança e canta o tempo todo, como o senhor vê.

O que me vexa é o Antenor. O Antenor foi com quem me casei depois que o pai morreu. Era um moço bonito que ninguém acreditou que queria casar mesmo e comigo, que bem se vê, não sou lá essas coisas. Mas o Antenor se encantou foi com minha alegria. Sempre fui alegre, gostei de cantoria... Ele chegou aqui com a sanfona atravessada nos peitos, todo salamaleque, apeou do cavalo e nunquinha que foi mais embora. Não quis de maneira nenhuma foi ter filho. Porque eu nunca soube. Mas, ficou velho e deu para essas coisas. Nenhuma mulher pode chegar mais lá em casa não. Vem ele lá e deita a beijar elas, levantar as saias delas. O senhor já viu disso? Eu fico é vexada demais. E o Antenor é um homem tão bom! Sempre que foi respeitador. Só pode ser duas coisas: ou o demo – cruz em credo! – que se apegou dele, ou está ficando biruta.

Eu já tinha ouvido falar que o doutor agora ia visitar a casa da gente. Custei foi  de acreditar, porque só a gente mesmo que já acostumou fica aqui. Daqui uns tempos nem vai ter mais ninguém pois que esses moços de hoje vão tudo embora e não volta. Só fica os velhos. Aí os velhos vão morrendo, as casas vão vagando, virando pasto, tudo largado aí. Mas, bem falei para Sofia, essa minha vizinha de trás, que se o doutor viesse mesmo eu ia pedir um remédio para o Antenor. Alguma coisa para abrandar o assanhamento dele, porque eu nem mais tenho com quem conversar. Estou até com pena do senhor, mas foi o doutor mesmo que pediu para eu falar um pouco da vida aqui, não foi? Só que eu falei foi muito, né? Então, eu não tenho mais com quem conversar. Ninguém vem mais aqui por causa do Antenor. Porque internar ele, eu não quero não, sabe? Já acostumei e o Antenor me faz uma falta que só. Preciso mesmo é curar essa descompostura dele. Onde já se viu isso? Depois de velho, não é mesmo, doutor? É de dar dó!
Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 14/05/2010
Código do texto: T2257145
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.