Faria sessenta e dois anos. Há dez anos eu a conheci enquanto moradoras do prédio antigo, no centro da cidade. Ruiva, de belos olhos azuis, belo corpo, mas seu semblante não era lá muito alegre. O marido, se bem me lembro, era militar. Não que tenha confidenciado algo sobre seu casamento, mas a meio tristeza que vez ou outra trilhava os caminhos de seu olhar, no meu ponto de vista, era fruto de amor magoado. Senão magoado, insatisfeito. Nunca o vi em sua companhia. E, lembro-me agora, não foram poucas as vezes que nos encontramos, mas em grande maioria, o fizemos nos mesmos horários.
Conversávamos futilidades, no curto espaço da entrada até o décimo andar e, se paramos ali, possivelmente fora para concluir qualquer conversa. De certa vez, para perguntar se suas músicas me incomodavam. Não incomodavam. Eram clássicos que renasciam pela manhã em pianos ou orquestras. Eu até gostava. Não sei quando dei por sua ausência, sei que nunca mais nos encontramos, até a tarde de ontem, quando segurou meu braço, assim que entrei no pequeno restaurante à beira da estrada.
Não a reconheci. Cobria seu corpo magro, quase esquelético, um casaco comprido de lã, cinza chumbo, desbotado e tanto encardido. Visivelmente abatida, cabelos ressecados e despenteados. Tomava uma xícara de café com leite como quem bebia com prazer uma dose de uísque. Tomando carona no como vai desconsertado, minha piedade suplicou que eu me sentasse.
O que o tempo faz com algumas pessoas assusta. Eu sentia-me além de assustada, invadida por pequenos insetos de surpresos pensamentos, que ora mordiscavam minhas lembranças, e outras, a comiseração. Mas, no caso dela, além do tempo houve o amor. Um amor que eu não conseguia perceber, que não vinha do menino Cupido, loirinho de olhos azuis e flexa na mão. Nem do másculo e jovem rapaz que anda pelo mundo fabricando sonhos nos olhos das mocinhas. Como era possível ao deus do amor manifestar-se no rosto tão envelhecido de alguém? Como era possível que esse deus de beleza e graça pudesse tocar em tão desiludido ser? Como podia o amor, essa figura encantada, abrigar-se em coração tão cansado, tão sem viço, tão sem.
Mas era visível que estava apaixonada. De uma paixão perdida de seu fio, desencontrada de seu par, desfigurada pela distância, por uma ausência petrificada no muito-antes-de. As mãos trêmulas se tocavam enquanto falava, como se buscassem apoio uma na outra. Um sorriso de passado redivivo destacava-se na face serena, ao pronunciar com docilidade o nome decorado pelo chamamento ininterrupto, sem reticências. Eu ouvia sem conseguir desviar o olhar dos olhos claros, que pareciam enxergar um além da vida. Não parecia se preocupar nem um pouco com sua aparência, não parecia sentir qualquer dor, não se queixava. As palavras saiam comedidamente, como se para serem ditas precisassem passar por algum lugar que as amolecesse. Contava, como a uma história, sua história sem ponto final. Conhecera outro homem, outro amor, outra vida que não coube nele. Nela, sim. E tão completa estava, que de nada mais precisava, nada mais pedia, queria, teria, senão tão extraordinária felicidade. E, era tão verdadeira que parecia mentira, invenção. Um ser alado, a Psique, curiosa, que se perdera de Eros pela obediência ao desejo de vê-lo. Ela não sentia o amor, via, vi-via.
Quando as luzes do restaurante foram acesas foi que percebi já ser noite. Estava hipnotizada. Ela percebeu e desculpou-se pelo tempo. Sorriu ao despedir-se. Eu a vi atravessar a estrada, carregando aquela felicidade bravia, felina, insustentável, desafiadora. E aquele amor, capaz de ser entendido apenas pelo olimpo.