Um (Des)Caso

A calçada era de um rosa dourado semelhante à cor do céu naquela hora, e ele confundia-se ao olhar adiante, aonde quase se fundia o que havia na terra com o que estava no alto. Contemplava em silêncio, sentado à margem do caminho, o movimento apressado de todas as coisas que se atravessavam ao tempo. As horas lhe eram indiferentes, faltava-lhe o relógio e seu pulsar vital aos homens, cuja nobreza impedia que olhassem a ele, ali, imóvel. Acostumara-se, assim, a não encarar olhos de gente frontalmente, tendo conhecido apenas um ou outro olhar oblíquo brevemente concedido.

Ao seu lado, o vira-latas. Não guardava lembranças de seu passado a não ser de como conhecera o cão vira-latas que o acompanhava. Era magro e tinha o pêlo opaco, ralo. Continuava feio e era a própria feiúra que trazia à tona a lembrança do encontro marcante com o cão. Foi num dia em que, como noutros dias, andava arrastando os chinelos com o chapéu de pano às mãos, vez ou outra o dirigindo a algum transeunte que pudesse compartilhar um dos pedaços de papel ou dos pequenos círculos de metal que as pessoas costumam trocar por doces e outras coisas. Era raro obter êxito e, se obtinha, quase nunca identificava quem lhe fizera a gentileza, seguiam todos tão ligeiros, e frustrava-se em não poder agradecer. Chegou à esquina da confeitaria de vitrine fascinante, onde os doces reluziam, e viu-se refletido naquele vidro sem se reconhecer de todo: magro, sujo, a barba crescida, algumas rugas fundas. Ao desviar o olhar de si mesmo encontrou o de outro ser com tanta sede quanto a dele, os olhos brilhando no meio de um pêlo cinza-amarronzado fosco, completamente vulnerável ao vento pela magreza excessiva. Amparado fragilmente sobre as patas, o cão lhe dirigia um olhar tão puro e terno que o comovia de modo a não conseguir, durante muitos instantes imprecisos, deixar de encará-lo. A partir daí, o cão passou a acompanhá-lo voluntariamente, e ele aceitou a aproximação. Era bom ter a companhia silenciosa e os olhos do cão junto de si.

Voltou ao chão onde estava porque o cão encarou-o e pôs-se em pé: aquela era também a hora em que gostava de andar. A fim de agradá-lo, ele seguia a seu lado aonde desejasse. Decidia o animal a direção, e foram os dois juntos rua abaixo. Pararam em frente a uma loja de roupas femininas. Mulheres de todo jeito, gordas, magras, grandes, pequenas, acotovelavam-se por trás do vidro e desfilavam suas roupas e chapéus nos espelhos aonde pudessem admirar a si próprias. Disputavam os provadores, empurrando-se, por vezes. Não lhe pareciam de todo muito diferentes: algo nelas se assemelhava, como se possuíssem o mesmo rosto que não mostravam. Escondidas sob os acessórios similares, camufladas em seus trajes apresentáveis, confundiam-se como se esse fosse mesmo o sentido, o de não causar estranhamento ao espelho. Porém, uma mulher estava parada, só, à porta da loja. Uma mulher cujo semblante não se parecia tanto com o das outras que de relance vira. Vestia um traje branco de decote amplo, com detalhes em renda vermelha que chamavam a atenção. Os braços e o colo estavam nus, e os cabelos curtos a deixavam quase completamente exposta.

Avançou alguns passos, apoiado na bengala que encontrara largada numa calçada há algum tempo, os pés descalços endurecidos de pisar o concreto dolorido. O vira-latas, quieto, avançou também e parou justamente a alguns metros da mulher, como se adivinhasse aonde ele estava indo. Chegando à frente dela, percebeu que parecia um tanto alheia ao movimento à volta. Não interessava a ela o andar apressado dos outros, tampouco notava que um homem a observava de tão perto. Seu rosto estava inclinado e ele, cortês, dirigiu-lhe uma reverência, tirando da cabeça o chapéu e curvando-se. Não esperava palavras e, mesmo assim, o silêncio entristeceu-o pela primeira vez. Levantou- se, falaria ele, interessava-se por saber quem era aquela moça formosa e quieta.

Só que os braços da moça expressavam escusas. Desculpava-se com a cabeça que pendia para o lado, de onde caiam ao ombro os curtos cabelos negros. Afastava-o dela com esses braços, o esquerdo junto ao corpo, dobrado para cima com o punho cerrado, como se fugisse, e o direito assim de mão espalmada, como quem dispensa favor ou se explica. Não lhe peço nada, disse, não há o que negar e ainda assim ela negava como se estivesse prestes a deixar-lhe ali com o cachorro e o chapéu. Impávida, permanecia com sua postura de quem o refutava tanto quanto ao resto das coisas. A mulher que se expunha sutilmente como se disposta a lhe conceder, em sua imobilidade, uma conversa mesmo breve, apenas o mantinha em silêncio à distância.

Não foi, no entanto, a distância ou a ausência da voz o que lhe causou mais dor. Foram aqueles olhos, aqueles olhos cerrados. Os olhos que diriam muito mais que os gestos e a boca mantinham-se sob as pálpebras, inatingíveis. Se os abrisse, ele enxergaria por dentro o que jamais vira daquele ângulo. Imaginava-lhe repentinamente os abrindo, na brevidade da expectativa que se assemelha ao eterno, podia sentir a possibilidade de luz atingindo-lhe. E a cada momento imutável atingia-lhe ao invés o golpe dolorido do olhar inacessível a ele. O cão permanecia ao seu lado, observando-o calmamente. Talvez tivesse piedade dele e esperasse compreensivo, ou estivesse simplesmente cansado, não o adivinhava como ele lhe parecia poder adivinhar.

A cidade ainda era, fracamente, rosada àquela hora e se apagava aos poucos. Enquanto esperava, o dourado esmaecia e, com ele, a possibilidade de ver o olhar da mulher em frente à loja que fecharia. E, ao fechar, seguiriam o cão e ele até onde ainda pudesse haver lugar aberto aos dois. Tudo se movia ao que cerrava, agora, a tarde se ia e iam-se os passos às construções pouco a pouco pondo trancas às portas para manter do lado de fora, afastada de si, a clausura. As mulheres sucediam-se atravessando a porta da loja quase sem notar os dois personagens da cena da qual ele participava. Mantinha- se em pé apoiado sobre a bengala e a esperança de ter um outro encontro de olhos de que lembrar além do cão. O sol desaparecia ao longe e a escuridão da noite espalhava-se pela calçada em que se via um mendigo apreciar uma manequim de cera de olhos fechados, enquanto da janela da loja, outra mulher estática, obliquamente, mirava-o.

(http://www.lutzenberger.com.br/porto_alegre_antigo_32.htm)

Clarissa de Baumont
Enviado por Clarissa de Baumont em 13/05/2010
Código do texto: T2254870
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