Essa noite não

O vento sul varre tudo o que há no chão, folhas secas, sacolas plásticas. As mulheres que param para olhar o corpo não sabem se seguram o vestido ou os cabelos. Os homens disfarçam, mas querem ver o corpo nu exposto sem vida.

-Era tão bonita e tão jovem! Ela não saía de casa nunca, raramente era vista aqui no prédio.

Comenta com pesar minha vizinha do apartamento ao lado.

Todos do prédio estão nas janelas dos apartamentos para ver meu corpo imóvel.

Pessoas surgem de todos os lados, ouço o barulho da sirene do carro dos bombeiros.

O corpo quase nu, a pele branca, os cabelos molhados e nenhuma gota de sangue.

Estava ali deitada no chão frio. Tão só.

-Pq estou aqui no chão? Como está frio! Pq essas pessoas estranhas olham para mim com olhar de pena e de horror?

Ao mesmo tempo que sentia um vazio vulcânico como se me tivessem arrancado todas as entranhas, sentia uma paz muito grande, simplesmente porque já não pensava mais.

Os pensamentos que me torturavam tornaram-se apenas brisa leve.

Já não pesava mais meus olhos e nem meu corpo.

O desejo frustrado e não realizado já não me ardia no corpo frio e vulnerável.

Talvez a premonição de minha mãe tenha se realizado:

-Lia, você nasceu para sofrer!

A minha nudez exposta ali, no centro da cidade, como num palco, alguns homens se acotovelavam para olhar. Os bombeiros logo que chegaram cobriram meu corpo com um tecido prateado futurista e me levaram para uma ambulância barulhenta com cheiro de éter.

Por alguns momentos apaguei.

Quando voltei a “ver” estava no meu quarto, na minha cama, só de blusa, sem calcinhas como gosto de dormir.

O corpo esticado na cama.

Quero segurar minhas pernas na cama, parecem pesar 100 kg cada uma, ao mesmo tempo elas se tornam tão leves, tão leves que parecem ter vida própria e querem levantar, levando meu corpo junto. Querem ir até a janela do apartamento no décimo segundo andar e voar, voar…e sentir o vento gelado da noite de inverno, perder o peso do corpo e apagar todos os pensamentos ruins.

É uma luta cruel entre minha mente e o meu corpo.

O barulho da ambulância havia cessado, tudo era silêncio agora.

Ouvi o canto de um pássaro, o som do motor de um carro e da vida seguindo seu curso lá fora.

Uma luz forte faz meus olhos arderem e sinto tontura, vertigem. E como se eu voltasse de muito longe e renascesse…..

Acordei……….Desta vez foi apenas mais um pesadelo.

ESSA NOITE NÃO!!