Quarentena
O deserto era causticante desde qualquer ponto visível até o fim da circunferência do horizonte. As sombras sofriam de insolação e as nuvens desavisadas mudavam de ideia e corriam na direção contrária quando se aproximavam. Bem em meio ao rincão erguia-se a imponente montanha, um altar fálico em meio à terra abrasadora, um obelisco amaldiçoado avisando que aquela poderia ser a última visão para os que por ali se aventurassem. Por outro lado, a montanha, se assimilava a caveira de algum titã que escolhera aquele lugar longínquo para perecer, com suas cavernas tal qual milhares de órbitas sem os globos oculares, vigiando silenciosamente o tempo e a distância. Contudo, uma velha força voltara a pulsar em uma de suas veias com o regresso de um antigo morador, ator de muitas das histórias encenadas para a plateia de rochas, mas que neste instante apenas sentava em uma pedra à porta da gruta, olhando o firmamento. O observador aguardava paciente, e visualizava o futuro, sim, o futuro imediato, pois quando se tem à sua frente uma planície de dois dias de caminhada, pode-se prever exactamente quando se terá visitas. Primeiro, os abutres aparecem pipocando nos céus com o calor da panela terrestre, depois revelam brincar com uma marionete de linhas invisíveis, uma pulga sem circo, um minúsculo ponto escuro no horizonte que se faz primeiro imóvel, não se mexendo senão devido à miragem, mas que depois cresce serenamente em tamanho, visibilidade e velocidade até tomar a proporção e forma de homem. Contra todas as probabilidades, o observador observa que tem visita, e uma visita há muito esperada.
Você demorou, cumprimentou o observador, com a voz calma e educada enquanto o visitante se aproximava, O que o traz nestes confins da Terra, Precisava de alguém para conversar, respondeu o visitante, O observador, malicioso como só ele, sorriu e provocou, Mas não és tu aquele que tem milhares, milhões, de seguidores, há de existir alguém entre eles para confabulares, Você sabe que não é assim, continuou o visitante enquanto batia o pó de suas vestes, Tenho milhões que se dizem meus seguidores, mas que na verdade seguem somente seus próprios desejos, e usam o meu nome em suas bocas, mas não em seus corações, e assim segue o mundo, cada vez mais longe da verdade e de mim, De mim também, completou o observador, antigamente eu era temido, odiado, mas lembrado, hoje o meu papel foi relegado a ser uma superstição antiga, caduca, impotente, que só serve para justificar os erros cometidos pelos que, de tão parca inteligência, não são capazes de arrumar bodes expiatórios melhores que eu, isso quando têm vergonha suficiente para usarem os pobres bodes, E pensar que o bode que já fora o teu símbolo de poder agora é o teu símbolo de chacota, E pensar, O visitante sentou-se ao lado do observador que, depois de contemplar brevemente um urubu próximo que dava um voo rasante, disse, A última vez que nos encontramos foi quando não fazias tanto sucesso literário, lembras, Sim, lembro, mas depois daqueles dias voltei duas ou três vezes e percebi que tu sempre havias saído a percorrer a Terra e andar nela, Tenho de admitir que estavas bravo consigo, por isso não te esperei, E por quê ficastes bravo comigo, Tu não cumpristes o prometido, Qual prometido, O de não falares de mim aos teus discípulos. Quando eles vincularam o meu nome a três tolas tentações, eu fui obrigado a rir sozinho enquanto lia absurdamente que tinhas te tentado pela fome, depois de tu teres jejuado por quarenta dias, ora, quem jejua por quarenta dias jejuas por quarenta e um, e depois disseram que eu te pedi para pulares do parapeito do templo, logo tu, que podias andar sobre as águas e subir aos céus entre as nuvens, e, por fim, acusaram-me de oferecer-lhe todos os reinos do mundo para governares em troca de um ato de adoração, sendo que eles mesmos escreveram que todos estes reinos e os anteriores a eles, e os homens, e a Terra, tudo e todos que existem, foram criados por ti. Faça-me o favor, uma história como esta, cheia de falhas de coerência e verossimilhança, até eu, se fosse escritor, pensaria em argumentos melhores e mais realistas para dar coesão à cena, Peço que me desculpes, mas não tive nada a ver com isso, tu bem sabes que não escrevi nada e nunca pedi para que os meus discípulos escrevessem, mas sabes como são as crianças, basta os pais saírem para que se façam as maiores algazarras, sendo inevitável inventarem, acrescentarem, aumentarem e interpretarem tudo o que eu disse e fiz e, principalmente, tudo o que eu não disse e não fiz. Se, contudo, serve de consolo para ti, eles também escreveram muita coisa sobre mim que não aprovei, O observador levantou-se e foi até o interior da caverna, como que procurando por algo, E pensar que quando conversei com Moisés, neste mesmo deserto, ele jejuando por 40 dias, igual a ti, fiz-lhe o mesmo pedido, que não contasses nada sobre mim e ele, ao encarar a multidão que lá embaixo o esperava voltar de mãos abanando, com o medo proporcional ao tamanho de sua imaginação, saiu-se com a história mais mirabolante da vida dele, que eu tinha lhe dado dez tábuas escritas em pedra, só para depois quebrá-las ao chão simulando um ataque histérico de raiva, convenientemente antes que alguém tivesse a oportunidade de lê-las, só para, por fim, ter a total liberdade de sair matando seus patrícios que naquele exacto momento desobedeciam o primeiro e segundo mandamentos que nem sequer sabiam que existia, O visitante, com um gesto afirmativo, acenou com a cabeça, Soube desta história, e que o ingrato nem tivera a honra de citar as fontes originais sumérias e egípcias que estudara quando era príncipe real no Egipto, O coitado do Hamurabi perdeu os direitos autorais por um bom tempo, Mas pensando bem, teve um que não te desapontou, Elias não escreveu nada nocivo depois dos 40 dias que jejuou contigo, Claro que não, aquele era completamente pirado, um escritor barato de autoajuda que limitou-se a plagiar Moisés descaradamente, deve ter pensado que escritor que plagia escritor que plagia tem cem anos de perdão, mas para ele tudo se resumia a efeitos especiais, era fogo aqui, era fumaça acolá, eram trovões por toda parte, daria um belo director de filmes sobre catástrofes, o velho careca. Mas não posso culpar-te como a eles, afinal, escreveram sobre eles mesmos, foram seus autobiógrafos, e incluíram a nós na história apenas para torná-la mais vendável.
O observador voltou da escuridão da caverna com um livro em mãos, desgastado, grosso, com a capa preta e letras doiradas, e o entregou ao visitante, junto com uma caneta, Já faz um tempo que queria te pedir um autógrafo, Mas não fui eu quem a escrevi, Deixe de modéstia, sabemos que aqueles ghost writers não teriam inspiração nenhuma sozinhos, Mas você não ficou bravo, No começo sim, mas depois que me vi nas listas dos mais vendidos de todos os tempos fiquei com um certo orgulho bobo, É, tu tens razão, apesar dos pesares somos os protagonistas desta história, Enquanto ela ainda for lida, sim, mas a tendência será as pessoas nos confundirem cada vez mais, até não conseguirem distinguir a própria direita da esquerda, Ou nos esquecerem, Ou o mais óbvio, nos trocarem por outros sem ao menos tomar consciência do que queríamos que aprendessem, que não existe o bem e o mal em si, mas apenas pontos de vista pessoais que transformam coisas e pessoas em boas ou más, Isso mesmo, meu irmão, você está certo, é por isso que me faz bem conversar consigo, É, somos os únicos que nos compreendem de verdade.
Este texto é uma homenagem a um dos meus escritores favoritos. Se você não faz ideia de quem seja, então não sabe o que está perdendo. Escrito originalmente no blog www.jefferson.blog.br em 05.05.2010.