A Menininha Loira
“Eu estou grávida”
Foi o que me falou aquela menina loira e de olhos verdes me encarando profundamente, como se esperasse algo mais de mim. Estávamos nos fundos da minha casa, um gramado amplo com uma árvore que nunca deu frutos. Era outono, e a árvore estava seca e morta, mas linda com as folhas caídas no chão que ela delicadamente pisou com a sandália. Ela se sentava em um balanço feito de pneu que eu havia construído na infância junto com meus vizinhos, na época tinha sido um grande feito, e ainda me orgulho de tê-lo feito. Ela definitivamente não sabia onde estava, era só um balanço e eu parecia só um rapaz. Mas não era assim pra mim, tinham muito mais coisas ali, meu passado todo parecia estar perto do clímax, o clímax de toda uma juventude que eu não sei ao certo se gostei de tê-la.
Voltemos ao outono, não o outono próximo, mas o meu sétimo outono. Tinha uma menina nova no colégio, não uma menina, mas uma anjinha. Os cabelos eram de um louro puro e inocente, os olhos verdes, às vezes azuis, encantavam qualquer um que se obstinasse neles. Ela era tão bonita que o rubor de sua face ao ser apresentada à turma me deixou rubro também. Eu era uma criança, apenas isso, mas me encantava divinamente com aquela coleguinha tímida, mas forte o suficiente para encarar os meninos mais fortes da sala. Eu sempre fugia dos meninos mais fortes, ou ia até a professora. Com ela, eu resolvi encará-los, não fui muito bem sucedido, mas encará-los igualou as coisas o bastante para eu sobreviver no colégio. Ela me conheceu aos nove ou dez anos, no saguão festivo do colégio. Era verão, estávamos jogando rúgbi no saguão, um dos meus amigos me passou a bola, eu desviei de dois meninos, e um terceiro me tirou completamente o equilíbrio, mas, segui em frente, caindo, mas segui. Olho para frente e vejo-a passando, em rota de colisão, mas não me culpem por não desviar dela, não tinha idade para ter pretensões sexuais e roçar nela de propósito, eu apenas fiquei deslumbrado. E olhando aqueles olhos verdes surpresos eu a invadi, atraído por aquele olhar eu não desviei, olhando-a nos olhos e frente a frente, eu a derrubei e joguei para trás. Havia um ventilador no chão, e eu a joguei lá. A hélice não chegou a arrastar-se, mas o ombro roxo já denunciava que eu tinha feito coisa feia, e das grandes. O braço dela não chegou a ser deslocado, mas se machucou muito, e ela o imobilizou por algum tempo. Castigo pra mim? Eu havia ganhado eram as melhores obrigações da minha vida, e hoje, olhando-a sentada neste balanço, me pergunto se não voltaram a fita. Naquela época, achei que ela ia me odiar pra sempre, hoje, eu acho que não há motivos para ela me odiar pra sempre, mas ela parece me odiar.
Papai me obrigou a ir visitá-la naquele mesmo dia, para me desculpar. Mamãe fez alguns bombons e mandou que eu levasse. E fomos os três até lá, papai disse que queria mostrar solidariedade quanto ao acontecimento já que fora apenas um acidente. Fomos recebidos apenas pelo pai dela, que foi muito gentil, perguntei dela e ele falou que estava no quarto, e ele me deixou subir. Ao entrar ouvi a briga entre ela e a mãe sobre como tomar banho, tudo bem até aí, mas, ao ver as roupas dela em cima da cama, e principalmente as roupas íntimas, eu fiquei rubro. Não me perguntem de onde veio esta coragem, era apenas desejo e com isso eu dei mais um ou dois passos até chegar na cama. Não toquei a calcinha dela, mas deslumbrei-a profundamente, como era doce e delicada, rosa claro, toda lisa, com um laço cor de vinho deslocado no canto direito e central, como uma porta a descobrir. O chuveiro foi ligado, e isso quase me denunciou, tamanho meu susto. Mas a porta não se mexeu, permaneceu fechada com as duas no banheiro, foi a minha deixa. Eu entregaria a caixa logo depois, perguntei para ela se ela tinha ficado brava comigo por aquilo, ela disse que não, que ela deveria ter desviado, mas que ficou quieta. Eu perguntei o porque, e ela me disse que apenas tinha ficado parada. Ela perguntou qual era o recheio do bombom, eu disse que seria surpresa. “Então é de creme” ela respondeu acertando, e acrescentou que quando me machucasse ia me dar sorvete, que ela preferia. Ela também me ameaçou, disse que eu passaria a ser escravo dela no colégio durante os dias que ela ficaria com o braço imóvel. Foi assim que ela me conheceu, e ficamos amigos, não muito próximos, mas amigos. Quanto aos dias de escravidão, foram menos do que eu gostaria, e fora alguns decretos mais mimados dela, fiquei só ajudando-a. Lembro-me de certa vez que ela pediu para que eu a levasse para casa dela, nas costas, porque ela estava muito cansada. Eu consegui andar cinco quadras, depois foi ela que teve que me ajudar a chegar na minha casa, pois eu já não conseguia ficar de pé sozinho.
Na adolescência, que me perdoem as musas dos pornôs, ou as gostosas da vez, minha libido era daquela anja loira. Nunca a usei para excitação sexual, a imagem dela era pura demais para isso, ela freqüentava as fantasias românticas, e todas as outras em que o meu deslumbramento a mantinha pura e divina. Ela, obviamente, não estava tão pura, o que me agradava à revelia de minhas fantasias. A mistura de agressividade e doçura nela me encantava, e assim eu fui crescendo, vendo a metafísica contraditória em que ela se tornava, e quanto mais distante ela se fazia das fantasias de princesa, mais ela encarnava-as. Como se ela dosasse certo e errado em medidas perfeitas, como se ela fosse o caos necessário à própria criação. Ela podia ter toda a pose agressiva do punk, mas ainda era doce e delicada no trato com as pessoas, desconstruia-se e mutava, maléfica e pura, fazia-se a si mesma, egoísta e encantadoramente. Nesta época falei pouco com ela, pois eu fiquei tímido demais, toda a fantasia havia me dominado, ela era intimadora pra mim, eu era um mortal, ela era a mais perfeita escarnação de Psiquê. Até que um dia, fui à uma festa na casa de uma amiga, cheguei cedo por cortesia, e só havia uma mesa e no canto escuro da casa. Fui até lá e me preparei para abraçar a anfitriã, porém eis que me surge das trevas, como que do inferno abaixo de mim, surge minha anja agora em cabelos negros. De repente ela se posta olho-olho comigo. Ela dera um belo sorriso, e me abraçara antes mesmo de eu me recuperar do deslumbre e poder chamá-la pelo nome, e só depois, então, abraçá-la de volta e poder conversar com ela. Melhor que tenha sido assim, direto do inferno, não tive tempo de ficar tímido, assim como não tive tempo desviar dela, assim como não tive tempo de apreciar a beleza da gravidez dela. Na verdade, eu nunca tive tempo com ela, passava tão rápido, ironicamente, o mais longo de todos talvez tenham sido os décimos de segundo em que nos olhamos antes de nos tocarmos pela primeira vez, e como foi rude o meu toque.
Ela me fez companhia naquela noite, que embora marcasse a maioridade de nossa amiga em comum, também seria sua despedida. Conversamos bastante, e nós tínhamos muitas coisas em comum, na verdade, não éramos parecidos, eu que fui me fazendo a molde dela, e buscando minha identidade nas margens que ela me dava. Mas definitivamente não éramos iguais, éramos próximos o bastantes para sermos confortáveis um ao outro, mas éramos muito diferentes, e muitas coisas deixavam isso claro. A começar pelo mais básico dos princípios, ela era imponente e natural, eu era tímido e ansioso. Ela me deixou confortável com o passar do tempo, e conseguiu fazer uma boa conversa fluir. Mas aquela noite acabou tão rápido quando a cruzada de pernas que ela fez. Quando estávamos na sala, frente a frente, ela cruzou as pernas, vi o suficiente para ficar rubro. Juro que ela não estava olhando pra mim na hora, mas eu talvez tenha ignorado a cruzada de pernas por pura timidez. Ainda me lembro com todos os detalhes daquela metade da noite, aquela cena demorou tanto quanto a trombada. O que passou mais rápido, porém, eu ainda nem tinha percebido, era ela que tinha passado rápido. Aquela festa também foi o adeus dela, ela se mudaria em alguns meses, e eu não falaria mais com ela antes de ela se mudar. Estranho que, no colégio, depois da festa nós trocamos cumprimentos e me atrevi a perguntar sobre notas, mas foi só o que minha coragem permitira. Ela ficou com seu grupo de amigas, e eu com o meu grupinho. Malditos sejam os clubes da bolinha e do luluzinho.
Um dia qualquer as amigas a recebem na aula com doces, e presentes - não era aniversário dela, eu sempre soube a data – e depois de algumas palavras sofridas, abraços e lágrimas, aquela podia ser a última vez que eu a veria. No intervalo ela ficou cercada, professores, alunos de outras salas, todos foram se despedir, menos eu. De todos os alunos da minha sala, só eu não me despedi, até os desafetos dela se despediram, eu não tive coragem, e ela provavelmente esqueceu-se de mim. Eram tantas pessoas, votos tão protocolados, que era natural que ela não lembrasse que eu não me despedi, nunca cobrei isso dela, mas eu deveria ter dito adeus. Passei em frente à casa dela, e olhei a movimentação naquela tarde. O pai dela me contou para onde se mudavam e porque, ela não estava em casa, e ele me perguntou se eu queria esperar para me despedir dela, eu respondi:
- Eu não vou me despedir dela duas vezes, obrigado pela oferta, tenho de ir.
E eu não me despedi dela. Os anos seguintes até o fim do colegial foram livres, sem aquela dama que possuía minha alma eu fui livre por poucos e ingratos anos. Fiz tudo do que eu me envergonharia, perdi o respeito por mim mesmo, em boa verdade. Eu fiz de tudo para perder-me de forma a achar a menina loira em um beco qualquer daquelas ruas, não achei. Achei, pois, promiscuas com cara de inocentes, sádicas mulheres dentro de roupa de crianças, achei as mulheres que se vendiam por ofício, e as que por ofício se vendiam. Por mais que eu me aproximasse das misturas que haviam formado-a, eu só achei escória. Me embebedei das mais variadas formas, e nunca fiquei embriagado, porque nunca estive sóbrio nestes anos. Eu vivi intensamente aqueles anos, mas não estava vivo, mesmo que gozado de prazeres, eu não fui feliz. Não é que aquela garota loira me fizesse feliz, ela não pode. Nenhum ser humano pode fazer outro ser humano feliz. Mas eu tinha um sonho, eu tinha um conjunto bem formado de porquês. Quando ela saiu, ela levou a deusa embora a tira colo, me sobrei com os mortais, criaturas fétidas e imundas que habitam verdadeiramente nosso mundo. Me deparei não só com as desilusões dos outros, mas com as minhas próprias desilusões, agora eu não era mais um prodigioso e genial menino tímido. Eu era, então, alguém fadado ao fracasso e solidão. Lá estava eu, no meio dezenas de pessoas, com o maior sorriso do mundo na cara, beijando uma garota lindíssima. Lá eu era o homem mais solitário do mundo, e não pela falta da minha anja, mas pela falta de mim mesmo. Este foi meu grande acerto, eu me criei em cima dela, por e para ela, quando ela foi embora, me abandonou com ela apenas. Só que ela não me servia mais de nada, e como num toque de mágica, eu perdi as influências do mundo sobre mim, e fiquei só. De repente éramos eu e o pedaço velho de calcinha rosa com laço vinho. Me inundei de prazeres para achar, então, o nada. Sem nada, sobrou algo que a tanto tempo eu me negava, eu mesmo, este eu reprimido e enjaulado queria bacanais romanos, e dei a ele estes bacanais melancólicos e vulgares, mas este meu eu também era desesperado. E no fim de todo este ato incessantemente vago, e melancolicamente desesperado, eu surgi. O eu por trás dos desesperos de mim mesmo, que me deram a impressão de ser eu. Surgi então o pouco de mim mesmo sincero e real que eu me tornaria, a pouca verdade que posso ter se não for sobre mim, simplesmente não será verdade.
O tempo passou e eu cresci, fui me tornando este ser complexo demais para me dar ao trabalho de dissertar sobre ele. O colégio terminou, e mesmo que eu parecesse melhor e mais sociável, no fundo eu ainda me sentia perdido. Entrei pra faculdade, e as coisas não mudaram, mas os rostos novos me deram alguma ilusão de futuro que eu gostei de acreditar, mas as coisas não duram pra sempre. Meu futuro foi se desmanchando, caindo em realidade, desmentindo meus sonhos e me dizendo para aceitar a mediocridade. Eu me obstinei a sonhar, e sonhei alto o bastante para o tempo não ousar destruir meus sonhos tão cedo, mas os sonhos se esvaeceram rapidamente. Duas garotas depois e um bom gole tragicômico me puseram em desesperança novamente, sonhei alto com prazeres que temporalmente estavam intocados, mas nem só de tempo vivem os sonhos. Alguns desprazeres e decepções depois eu parecia não incapaz, mas impotente. Passei meus dias, sim, passei como deveria tê-los passado, passei rodando a roda da vida. Com as cartas marcadas da rotina o tempo se foi.
Era numa praça, no início da noite que o improvável me brindaria com o possível. Lá no meio da praça, sentadas em um banco, as quatro vozes de passado que me despertaram. Despertaram uma série de memórias e um sorriso incontestável em minha face. Então, fui lá cumprimentar não apenas minha anja, mas todas as quatro meninas que já não via à muito tempo. Quanta recordação em tão pouco tempo, e como ela estava provocante... os cabelos agora eram os mesmos da infância. Era um convite para degustar dos meus sonhos passados. E com a desculpa de vê-las reunidas eu fui ficando, e fomos conversando e fofocando as novidades. Até que elas decidiram ir embora, mas não antes de me avisar que passariam a noite em um bar. Fui pra casa com as pernas trêmulas e suor na minha face; que demônio eu havia despertado? Um sacro. Liguei para um amigo e obriguei-o a desistir de uma das mais famosas festas da cidade apenas para me acompanhar, assim foi feito. Fiz questão de chegar apenas uma hora depois combinado, e elas estavam lá, e disseram que tinham acabado de chegar. Elas nos convidaram para nos juntar à mesa, e assim fizemos. Foi um noite alegre e divertida, sem grandes novidades. O bar fechou e duas delas se destacaram do grupo para ir à outro lugar, e sobramos os quatro, como eu e meu amigo tínhamos “planos diferentes”, consegui a chance que esperei minha vida toda, e nem pude dizer que consegui isso. Foi meu amigo, que decidiu fazer como fez, tirou a outra garota pra si e pronto, caiu no meu colo. Aliás, sempre caiu, ou caí. E nos sentamos na praça, conversamos, e a conversa foi se apimentando. Até que certo ponto eu achei que poderia beijá-la, mas me acovardei. Haviam dois mundos desconexos ali, e eu não conseguia juntar o passado e o presente. Não conseguia saber o que eu estava realmente encarando em minha frente, eu já não sabia mais quem era ela. Minha timidez me dominava não por medo de rejeição, mas por perda do meu tão íntimo passado, meus sonhos, e estes dois ou três segundos que me dei a iluminar meus conflitos me fizeram tão rubro, que eu tinha certeza estar com cara de idiota.
Ela me beijou.
Se aquela menina errada e agressiva era uma princesa em meus sonhos de príncipe ela definitivamente não seria adormecida, seria altiva e intrépida, roubando da boca do lobo um beijo. Quando dava à ela o erro, a coragem, e o caos; é porque eu sempre soube que dependeria dela os atos, nunca neguei minha covardia. Se a dei força, é porque eu sei que não venceria os meus dragões sem ajuda dela. E arrombando a porta de seu cárcere, avança a princesa de espada em punho, e mata o dragão pelas costas nos décimos de segundo em que ele se pergunta “que princesa é esta”. Eu não sabia nem onde por minhas mãos, e nem como beijá-la, eu entrei em curto-circuito. Depois de um momento que de tão intenso eu nem pude aproveitar, ela retira a face e me pergunta porque tanta timidez. Você é muito imponente; é o que eu respondo. Ela se pergunta se eu me incomodo com a iniciativa dela, eu digo consigo em alguns argumentos dizer o contrário, pois eu desejava tanto isso, que só seria pleno se eu não realizasse isso, se ela me desse isso por si mesma, teria de ser dela, e foi. Se eu tivesse beijado-a, eu não teria conseguido, eu teria galanteado, me imposto, mas como veio dela, eu realmente consegui. Mas esta parte eu não disse, eu não disse nada do passado dela que só eu vivi. Eu desejava que ela quisesse me seduzir, e aquela princesa só saberia seduzir com favas, sinceridade, ou atrevimento. Princesinha atrevida. E ela foi conversando sobre a iniciativa feminina, e fomos destruindo estereótipos de gênero; mas antes que isso voltasse ao zero tomei a decisão mais receosa de minha breve vida. A beijei de volta. Interrompi-a no meio da frase, assim fora de hora e desajeitado, foi onde minha coragem me permitiu, eu nada podia mudar. E comecei a senti-la, sua carne, sei cheiro, sua saliva - aquela altura com gosto de malte -, seu toque, e seu olhar. Aqueles olhos de desejo carnal simples, desconcertantes e encorajadores. No beijo dela eu só senti a minha alma os meu sonhos a minha princesa, a minha anja, eu não havia sentido-a realmente, eu só tinha delirado minhas fantasias eróticas mais puras. Esta menina me dera coragem para enfrentar os meninos mais velhos no colégio, e sua tutela agora me encorajava a descobri-la, tomá-la, amá-la, encarná-la em humanidade que eu mesmo tinha beatificado.
Não fomos muito longe, era um lugar público e nos contivemos. Eu a convidei para entrar em minha casa, e disse que meus pais não se importariam de tê-la para o café ou almoço. Mas ela rejeitou, acompanhei-a até na casa dos tios, mas ela não me convidou pra entrar. Fiquei deslocado na hora de nos despedirmos, e pedi o telefone dela, ela disse que eu não ia visitá-la mesmo, então achava que não teria utilidade dar o número, mas deu. Fiquei esperando um beijo ou algo mais, mas ela entrou e sem mais contatos físicos. Eu esperei alguns segundos, acompanhando o apagar e ascender de luzes da casa, fiquei olhando para a última janela que se acendeu. Encarei por um longo tempo aquela janela, e ela não foi olhar a rua. Estou aqui, em frente a ela sentada neste balanço e ela não vem me olhar. Naquele dia eu fui embora, olhando para trás, eu fui.
Alguns dias depois, eu liguei. Ela não atendeu, insisti mais algumas vezes, e ela não atendeu nem retornou... eu entendi. Peguei as rédeas de minha velha vida, embebedada de tédio e miséria humana, não miséria física, mas social. E o tempo voltou a passar, mas eram dias mais frios, mas longos, mais trágicos, e porque não, mais cômicos. Aquele humor negro que só deus tem, foi no meu ápice a minha maior tragédia. Consegui o que eu queria e para isso deveria perder não as esperanças, mas a pureza de minhas memórias, eu teria de destruir a santidade das minhas anjas com jeito de prostitutas. Anjas com jeito de putas puras, que depois de tantos anos, são agora destroçadas por uns poucos goles de êxtase. Deus, o grande sádico das moléculas, entremeou meu destino em desilusões, todos os caminhos eram assim. Se eu a visse e não falasse com ela, não fosse no bar, ou simplesmente não a beijasse, eu sentiria a culpa por covardia, mas conseguir implicava na dor da sabedoria, saber que eu fracassei por pura natureza. Eu tive de vender minhas belas e doces lembranças para conseguir o mesmo fracasso que eu teria levando de brinde, só pela covardia. Mas este é um pouco pior, é mais perverso porque além do desprezo dela por mim, eu fico me sentindo infantil por ter ligado pra ela, por ainda ter corrido atrás dela.
Nunca tive mágoas dela, e por isso tentei guardar o que foi de bom da menina loira, e daqueles beijos. O tempo andou mais alguns anos na cronologia. E nada de diferente em relação à minha vida. Até que um dia eu vejo que antiga casa da família dela tinha novos moradores. Por curiosidade passei para ver quem eram, como passei assim que ela se foi. Ela estava lá, com o pai, e mostrando aos inquilinos o imóvel. Eu fiz que não vi e fui-me embora, mas ela me viu. Gritou-me, e nós conversamos sobre o pouco tempo que havia passado, e perguntei porque ela estava na cidade, e ela disse que “à negócios” e demos risadas. Ela passaria o feriado na cidade, e combinei de recebê-la em casa dali à algumas horas para tomarmos um café. E foi ali, sentados na mesa da minha sala que fiz uma pergunta engasgada a anos, porque ela nunca me ligou. Ela respondeu “Não faria diferença nenhuma, não daria em lugar nenhum, achei melhor assim”. Depois impus uma conversa próxima, olho no olho, sobre aquele dia. Ela me interrompeu bruscamente e me deu um beijo. Eu devolvi. Naquele sofá, que é de um péssimo verde musgo, tivemos nossa primeira vez juntos. Estava vivendo delírios denovo, mas mantive meu sonhos abatidos, e minha atenção no presente. Eu desliguei de todo o mundo que não aquele corpo branco e adocicado, e entrei naquele jogo consensual, de posições, verbos, e abstrações tão rápida e tão profundas como o próprio ato. O estranho à mim é que já não havia mergulhado naquelas fantasia de outrora, eu mergulhei na criatura de olhos verdes real, eu não encarnei meus sonhos ali, eu desencarnei de novo aquele, só que mais do desencarná-la, as encarnações já não cabiam nela, mas sempre a seriam. Como ver uma foto de criança e saber que foi você, sem se reconhecer. Será nostálgico e próprio. Durante aquele feriado, isso aconteceria mais duas vezes, todas na minha casa. E como eu estava grande naqueles dias, estava sorridente, confiante, eu estava enorme e poderoso. Eu parecia filho de deus, de tão bem que eu estava. Mas como filho de deus havia dois metros à frente outra emboscada do divino. Na noite antes de ela ir embora, em perguntei a ela se deveria esquecer aqueles dias, ela disse que caberia a mim escolher, e que ela viveria a vida dela. Desta vez não foi tão ruim, o ruim é que eu decidi visitá-la pouco tempo depois. Liguei pra ela que misteriosamente atendeu, e disse que estaria na cidade. Ela disse que não ia me ver por uma desculpa qualquer. E não foi. Com isto, aquele beijo dela no meu sofá perdeu o sentido, talvez um pouco de culpa da parte dela, ou talvez eu fosse só um boneco pra dar prazer a ela. Mas, seja lá o que ela for, já não era mais a anja da minha infância, havia separado-as muito bem.
Foi ainda naquele mesmo ano que tudo ganharia ares legitimamente tragicômicos. Eu fui passar uma pequena temporada na cidade dela, para um curso de fim de verão. Não ia avisá-la, mas antes do fim do primeiro dia ela apareceu, e conversamos em um café próximo. Eu perguntei porque ela veio, e como ela sabia de mim. Ela disse que eu talvez quisesse ajuda para conhecer a cidade, e que guardaria mistério sobre como sabia da minha ida pra lá. Eu a convidei para jantar, e ela dormiu comigo no flat, e nós transamos. E na manhã seguinte ela tinha ido embora. Assim seguiu-se durante aquelas duas semanas, ela aparecia nas noites em que queria, e nós conversávamos, nos amávamos e transávamos. Mas ela nunca estava lá de manhã, eu parei de perguntá-la o que era aquilo, ela sempre respondia com ironia, ou agressividade, e nunca me dava uma pista concreta. Fui achando que era só aquilo mesmo, sem nenhum significado real. Devo admitir, foi muito bom, mas não me deu esperança, me deu mais cara de brinquedo, de dildo. É bom ser um dildo. Transei com ela por pura libido, por causa da beleza e sedução que a imponência dela tinha naturalmente. Lembrei muito daquela mulher dos meus sonhos do passado, mas não a invoquei jamais. É tão irônico, nos dias que eu parecia estar vivendo tudo o que meus sonhos sinceros de adolescente pediam, eu me sentia pior que nunca. Ser objeto dela me dava desesperança e medo. Posso eu ser algo verdadeiramente disponível a alguém? Posso não ser de alguma forma objeto de alguém? Será que isso tudo não era sincero demais, e eu já não conseguia enxergar? Mentalmente foi uma época produtiva, e por mais feliz que pudessem parecer estes dias, foram deprimentes. Não sou um ator, não transava com ela por nada, e mesmo que me prendesse bem, eu queria vê-la lá pela manhã. Mas nunca à vi. Eu a usava, mas não a tinha. Dos meus pesadelos mais dolorosos a sensação de insignificância e irrelevância, quase de desumanidade, ia tomando corpo. Aquela menina que me fez humano, tentava desconstruir tudo isso com o mesmo que ela usara pra construir. Ela começava a me fazer ter nojo de mim mesmo, mas eu não podia evitar, ela era bela demais para eu resistir sem minhas anjas da guarda.
Algumas semanas depois, eu estava em casa, digitando trabalhos para o último ano da faculdade e alguém bate a campainha. Era ela. Em um vestido longo rosa, quase de criança. Ela entrou e atravessou na minha sala antes que eu pudesse dizer algo. Disse que tinha algo muito sério para me dizer, e que se era ou não boa notícia ela não saberia. Mas ela disse que seria uma notícia que mudaria a minha vida, e por isso eu podia escolher o momento em que ela me contaria. Convidei ela para irmos para o quintal, porque lá seria o melhor pra isso. Ela se sentou no balanço que havia na árvore, me olhou profundamente. Por mais que aquela cena me desse esperança, afinal, notícias tão fortes vindo dela podem ser boa coisa. Mas, eu também tinha medo, porque ela não exalava boas notícias, estava rígida e elétrica demais. Era nervosismo aparente, mas nervosismo não me dizia nada. Eu disse a ela que podia dizer tudo, sem floreios. Então, ela disse:
“Eu estou grávida”
E passou a me olhar com olhos de raiva como se agora eu devesse assumir uma culpa que não era minha, definitivamente. O vento arrancou mais algumas folhas naqueles minutos que ficamos nos olhando, eu fiquei pensando em como aquilo tudo representava o meu passado. Eu finalmente consegui, mas, mesmo tendo conseguido, como eu falhei veementemente! Agora eu finalmente tenho os laços eternos que sempre sonhei ter com ela, mas ganhei de brinde o ódio eterno estampado naquele olhar.
-Eu usei camisinha... - tentei antes de mais nada me eximir de qualquer culpa, antes de questioná-la sobre a gravidez.
-Continuo grávida. – respondeu ela asperamente.
-De mim? – não queria ser tão rude, mas a aspereza dela me obrigava, mesmo assim eu ainda tentei dar a ela mais a possibilidade da dúvida e do engano, do acusá-la de algo.
-Só transei com você. – respondeu ela como se dissesse o óbvio.
-Mais fácil a camisinha furar que você me enganar? – levantei nesta pergunta todas as minhas amarguras secretas que ela havia desenhado.
-Me chamou de promiscua? – disse ela desafiando.
-Não, eu só acho muito difícil o filho ser meu.
Nossa conversa seguiu amarga da minha parte, e acuada da parte dela. No fim acabamos nos entendendo, mas não antes de muitos atritos. Os termos finais eram bem simples, eu ficava com o direito de questionar a paternidade da criança, e ficava livre para escolher acompanhá-la como pai até o fim da gravidez, ou não. Como ela não havia decidido se teria ou não a filho, eu só teria direito de opinar se participasse como pai do pré-natal. Nós dois vivíamos como o dinheiro de nossos pais, logo, ambos os pais seriam avisados imediatamente. Fiquei muito tendencioso a acreditar nela, pois fui, segundo ela, o primeiro a saber da gravidez dela; e ela viajou algumas hora de ônibus, em segredo, pra isso. Ela não teve ciclo este mês, e resolveu arbitrariamente fazer o teste, e deu positivo. O que explica esta data tão estranha para dar-me o “diagnóstico”. Ela também concordou em ficar para dormir na minha casa, já que eu queria explicar tudo aos avós (ou não). E também se submeteu a um teste de gravidez na minha frente. Não foi lá uma cena romântica, mas os olhos dela tinham algum brilho enquanto passava o tempo e o teste dava, então, positivo.
“Seus olhos brilharam quando o teste deu positivo”
Ela ficou rubra, e começou a falar algo que tínhamos evitado, o que seria um filho na nossa vida, ou melhor, como ela preferia dizer, na vida dela, já que eu não acreditava ser o pai. E como uma criança pequena ela ficou reclamando só de si, esperando que eu me incluísse como pai daquela criança pela primeira vez, e aceitasse a paternidade por mim. Mas eu não o fiz. Ela começou a se dizer incapaz, e que seria uma péssima mãe, eu tentei convencê-la do contrário, e caí na tentação de me postar como pai. Mas ela tratou de me rebaixar e de tentar me por como mais incapaz que ela para cuidar da criança. Ou seja, foi bom, agora ela parecia acreditar poder cuidar um pouco da criança. Não demorou muito para meus pais chegarem, e eu contei a visita que teríamos para o jantar, e que ela dormiria ali aquela noite.
Ela já estava advertida para me deixar contar tudo no jantar. Então tudo correu desta maneira.
No jantar, eu comecei contando nosso envolvimento, e deixei que ela explicasse a gravidez. Papai se esforçou para dar ares de boa notícia às novidades, mas mamãe se postou como boa sogra, e fez duras interpelações a ela, mas, jamais tocou no meu acordo com ela sobre a paternidade, e nem questionou minha paternidade sobre aquele bebê. Ela questionava as capacidades maternais não só dela, como minhas, e exaltava que não podíamos sustentar o bebê, que tínhamos sido irresponsáveis, e toda a maternalidade que se espera de uma mãe-avó neste estado. Após o jantar, e com o clima pesado o bastante, papai começou com as piadas sobre tudo, como se eu agora fosse me tornar um marido e pai de família, as piadas sexistas e familiares, e acabamos a noite de maneira leve. De madrugada, recebi uma visita no meu quarto, esperava que fosse mamãe, impaciente, vindo pra me dar as devidas broncas. Porém, era ela, em roupas íntimas ela entrou no meu quarto e se deitou em minha cama, sem que eu nem me mexesse. Ela me deu beijinhos na nuca me acariciou até que eu “acordei”. Então ela começou a me beijar e fizemos sexo de novo. Com camisinha, mesmo ela já estando grávida. Usei como desculpa as DST’s, só que realmente eu ainda não confiava naquilo tudo. Logo depois que terminamos ela foi embora do meu quarto. E quando eu acordei de manhã, ela já estava à caminho de casa.
Restava então as broncas em casa, mas ao invés de broncas, eu recebi apoio de minha mãe que achava aquilo muito estranho. Mamãe duvidava da maternidade, assim como meu pai. Mas enquanto mamãe achava que era golpe da barriga, papai achava que ela estava atrás de um bom pai/marido depois de ter engravidado de um “indecente qualquer”. Os dois concordaram que o acordo de paternidade era bom, mas ressaltaram que era só verbal, e portanto eu não tinha nada. Enfatizaram para eu não cair na tentação de acompanhar a gravidez e me envolver emocionalmente com um bebê que não era meu. Depois os dois questionaram o uso da camisinha, mas nisso eu pareci convencê-los. E no final eles disseram que se eu for o pai, eles iriam agüentar tudo até o fim do ano letivo, quando eu me formava, e depois teria de sustentar-me sozinho. Antes de eu ir sair, papai se aproximou e me disse “Não conte pra tua mãe, mas estou orgulhoso; além de ser filha de boa família, ela é mais bonita que qualquer mulher que eu já transei”. Deus é mesmo incoerente, agora que eu recebo uma das notícias que meus pais menos queriam ouvir - ou não -, me sinto tão acolhido e protegido por eles como nunca tinha me sentido antes. Talvez a minha paternidade tenha inflamado neles a minha condição de filho. Quando achei que eles se levantariam contra mim, eles me acolhem e me protegem, pois eu nem sequer posso ser acusado de algo. Tudo está parece tão as avessas que eu nunca desgostei tanto a minha anja, mas ela nunca foi tão atraente quanto naquela madrugada. Meu pai até se orgulha de uma menina que ele acredita que só está atrás de um marido qualquer para um filho de um “indecente qualquer”.
Eu não fui para a faculdade aquele dia. Fui ser marido dela, mesmo sem saber o que isso seria de fato. Peguei o carro e fui atrás dela. Quando cheguei na casa dela, não havia ninguém. Fui atrás dela na faculdade, e demorei a encontrá-la. Ela perguntou o que eu estava fazendo ali, e disse que nós já tínhamos conversado tudo. Eu neguei, e disse que vim me oferecer à ela para estar junto enquanto ela fala com os pais.
- Você vai atrapalhar, será mais natural se for apenas eu e meus pais. Você é um estranho, vai mudar o clima da casa.
- É natural dizer que está grávida sem apresentar um pai junto? – esta imponência e prestatividade da minha parte vinham, quem diria, daquela menina que me ensinou a lutar com os meninos maiores do colégio.
-Então você é o pai? – Ela não foi rude, parecia algo entre a descrença e a perplexidade.
-Eu sou o único pai que você tem, ou tem outro?
-Queria ter.
-Eu acho que você tem o que quer. – eu não queria deixar a conversa agressiva, “mas, foi ela que começou”.
-Se não acredita em mim, o que faz aqui?
-Retribuindo o teu favor de falar com meus pais.
-Eu não preciso dos teus favores.
-Mas precisa de mim. - Então fez-se um breve silêncio onde ela parecia acuada e pensativa, e então devolveu.
-Às oito, na minha casa, talvez eu também te ofereça para dormir lá.
Foram horas longas, entre esta conversa e a ida a casa dela. Acabei pegando um quarto em hotel, para tomar banho e passar o tempo. Fiquei algumas horas deitado olhando para o teto, imaginando, entre perguntas e respostas, o que seria muito conversa com os “sogros”. Até que chegou meu tempo de ir lá. Para minha surpresa não houve contratempo algum, e tudo correu com leveza e sutileza comigo, principalmente diante de afirmarmos que usamos camisinha e que por isso eu duvidava da paternidade, porém fiz média ao dizer que acreditava nela e por isso estava ali. Mentira, eu estava ali por que aprendi a fazer isso com aquela menina loirinha. Fiz isso para não me sentir mal por não tê-lo feito, porque eu precisava fazê-lo. Haviam sentimentos por aquela mulher que talvez fossem as verdadeiras fontes de tudo isso. Mas eu não me permiti sentir isso, pois isso parecia mútuo. Percebi naquelas conversas um pouco de acidez com ela. Ter recebido o apoio de meus pais, já era inesperado demais, agora receber indulto dos sogros, que vão crucificá-la, já me parecia demais. Eu não tinha tanta razão, se o filho fosse meu. Fiz o que pude para tentar inocentá-la de algo que ela não fez sozinha. Mas parte da conversa estava sendo tenebrosamente protelada para minha ausência. E assim foi a noite, para não dizer que não houve nada demais, ouvi da mãe dela as mesmas preocupações de mãe-avó que já havia escutado da minha. De madrugada, fui visitá-la no quarto, e saber o que ela tinha achado da conversa, ela não quis conversar, bateu a porta em minha cara. Quando dei meia volta, ela reabriu a porta, e me convidou para entrar, mas mandou eu ficar calado. Logo ela me beijou e repetiu o protocolo passado. Inclusive não estando em casa pela manhã.
Liguei para ela no outro dia, e ela não quis me contar do que acontecera na conversa exclusiva com os pais dela, apenas me disse que eles tinham uma boa impressão de mim. E também me avisou que tinha marcado o ginecologista, para começar o pré-natal, e faria junto a primeira ultra-sonografia. Perguntou se eu ia, e eu respondi que era uma decisão difícil a de acompanhá-la na gravidez ou não. E desligamos. Quando chegou o dia, porém, eu resolvi ir, peguei o carro e fui em segredo, pois estava desacatando uma sugestão de minha mãe de não me envolver com a gravidez. Fui buscá-la em casa, e levá-la para a consulta como – vejam só – um bom casal. Logo de cara eu já descobri que aquilo poderia ir longe demais pra mim, caso eu não fosse o pai. Ao sair de casa ela me entrou uma folha de papel cor de rosa, visivelmente arrancada de algo como um diário. Era uma lista de nomes, mas apenas nomes de meninas. “Ainda não fiz os masculinos, são mais difíceis” justificou ela. Era como se ela jogasse pesado, diante da minha inocência de vir ajudá-la. Escolher o nome para a menina, caso fosse, seria marcá-la como algo pessoal meu, apenas ler aquela lista já me deixava próximo à criatura naquele ventre, pois já conseguia ver seu rosto, suas travessuras. Aquilo já era colocar as minhas filhas naquele ventre oculto e cheio de possibilidades. Ela me pediu para escolher alguns poucos nomes que eu gostasse mais, e que depois ela escolheria dentre estes, caso eu não quisesse escolher o nome. Eu sugeri: “Você poderia ser gentil comigo, e esperar o DNA para eu dar nome à um filho verdadeiramente meu.”. Ela disse que era tempo demais. Eu não quis insistir na conversa, ela estava me dando um ultimato e exigindo que eu fosse o pai agora, e não só depois do teste. Ou ela estava muito confiante que o filho era meu, ou muito confiante que o filho não era meu. Eu podia jogar com o tempo à meu favor, então ia jogar.
De tudo o que aconteceu na minha vida até aquele dia, nenhuma notícia foi mais sádica que aquela. Por tudo o que esteve envolvido, e por ser um desfecho tão mesquinho para o modo tão duro e arrastado como aquilo havia se feito. O ultra-som não encontrou feto algum, e foram feitos outros em outras clínicas nos dias seguintes, mas, simplesmente não havia feto. Diagnóstico: gravidez psicológica. Graças à deus, o filho é meu realmente. O teste de gravidez deu positivo por causa das alterações hormonais que o corpo dela produziu ao começar a gravidez. Posso ligar para meus pais e dizer que o pior já passou, eles não vão acreditar sem falar com os pais dela, mas tudo bem. A gravidez psicológica decorre de um desejo intenso que algumas mulheres tem de engravidar, não existe feto, mas todas as alterações hormonais estão presentes, sem alguns exames pode não se perceber a farsa por um longo período. Agora eu posso escolher o nome da menina, é minha filha mesmo, e é menina porque tem nomes mais fáceis de escolher, alem de mais bonitos, e mais significativos. O que mais em nossa relação este desejo maternal explica? As manhãs pós sexo que ela fugia, como as amazonas gregas? A gravidez foi um processo só dela, e que sou totalmente inocente, e ela também é, o filho então é só dela, mas agora me sinto livre para me apropriar das intenções dela de me fazer pai. Logo, fizemos isso juntos, mas só ela o criou e aumentou. Não é tão diferente. Mas teve uma coisa que não me desceu muito bem, porque ela parecia tão aliviada, se ela deveria ter um desejo tão intenso de ser mãe.Talvez ela apenas não se permitisse demais.
Passado alguns dias, com as coisas já devidamente reestabilizadas, ela me chamou para ir a casa dela, e disse que tínhamos que conversar. Foi pra lá pensando que era bom que fosse conversa, e não que fosse mais uma tentativa de engravidá-la, e que depois ela não conversasse comigo mais uma vez. Seria propaganda enganosa. Ela me recebeu na porta com o mesmo vestido rosa que usara para me dar as “boas notícias”. Nos cumprimentamos de uma maneira tímida e nervosa. E ela me convidou para entrar, com um sorriso constrangido porém sincero. A mesa estava preparada para um café, coisa que eu não esperava. Ela me disse para eu me sentar, que ela ia buscar o café. Ela me trousse um pote de sorvete e uma jarra de liquidificador.
-O que é isso?
-É um drink gelado de café, achei que combinaria com o sorvete. – Disse ela parecendo feliz porque eu perguntei.
-Eu nunca tinha feito antes, espero que esteja bom.
-Parece bom.
-Você sabe de que é o sorvete? – perguntou ela com uma esperança que me imediatamente me dera a resposta.
-É de creme.
-Você lembra então?
-Dos bombons?
-Sim. Eu sempre me lembrei que o dia que eu te machucasse eu teria de te dar um sorvete de creme. – disse ela um pouco distante.
-Obrigado, mas eu acho que a inexistência do nosso filho não é algo tão doloroso. – disse eu tentando não desmerecer a gravidez, que de algum modo, havia sido intensamente desejada por ela.
-Eu vou para Berlin. – cuspiu ela o mais rápido que pode.
-Sim, e isso me machuca? – perguntei para ela, sabendo que ela estava certa.
-Você gosta de mim, eu sei. Vou para Berlim continuar meus estudos, e não quero que você acredite que eu gosto de você. – disse ela em tom melancólico.
-Mas gosta de mim?
-Eu já te respondi.
-Onde? Falou que eu não deveria acreditar nisso. – perguntei calma e suavemente.
-Devia se perguntar quando eu respondi.
-Quando?
Fez-se um breve silêncio enquanto eu ruminava as minhas concepções de ela gostar de mim ou não. E ela não se manifestava em me responder, mas eu nem reparava.
-Eu devo muito a você, por ter vindo aqui e enfrentado meus pais, por ter estado comigo como pai, no pré-natal e nas notícias de que era falsa a gravidez. Você me ajudou muito, eu não tinha o direito de falar isso para você desta maneira. Me desculpe. – havia alguma tristeza nos olhos dela, mas não senti que ela tinha pena de mim, senti que ela se culpava por fazer isso.
-De onde veio o desejo de estar grávida do nosso filho? – retruquei indo a última grande pergunta que me restara.
-Nosso filho? – retrucou ela surpresa, mas sorridente, como se tivesse ganhado um doce, ou vencido uma partida.
-Mesmo ele sendo só seu, criação sua, eu era o pai, não era?
-Era. – Respondeu ela ainda com o sorriso infantil na face.
-Então, porque você queria ser mãe? – emendei, para não ficar um clima muito forte.
-Eu não queria ser mãe àquela altura. Eu não desejei isso. – disse ela perdendo o meu olhar de novo, e voltando-se para si novamente.
-Mas...
-Mas eu adorei.Era tão bom me sentir mãe. Eu desencaixotei umas bonecas do porão, dos meus tempos de menina, e fiquei olhando pra elas. Dos tempos que eu sonhava com isso, das coisas todas que parecia ser a maternidade. Da inocência daqueles tempos, da passividade e tranqüilidade que eu tinha em só desejar ser mãe. Fazia muito tempo que não lembrava da minha infância. Eu me sentia plena e completa naquele tempo, eu e minhas bonecas. Eu senti isso de novo, anotando e escolhendo os nomes de menina que poderia dar pra ela. Eu adorei sonhar, mas, foi melhor assim, eu não queria ser mãe. – Disse ela quase que pra ela, com olhos brilhantes e a voz calma de quem conta um pecado.
-Não quer ter filhos?
-Tudo em seu tempo. - respondeu ela no mesmo tom.
-Falando em tempo, pode me dar uma foto do muro, quando for pra Berlim?
E assim segui-se uma conversa amistosa, até que eu fui embora, horas depois. Perguntei a ela se ela voltaria de Berlim, ela voltou a responder “tudo em seu tempo”. E depois disso, não a veria mais. Este final melancólico, quando eu perco-a justamente quando voltava a me interessar por ela, a me reencontrar com ela; esconde um sucesso meu. Quando ela ficou grávida, não foi do desejo dela, foi do desejo da minha anja, da menininha pequena que existe dentro dela. Apesar de ter se transformado em algo tão diferente, aquela menininha ainda existia, e eu a toquei, a amei de novo. A amei verdadeiramente, como eu nunca achei que seria possível. Depois de me despedir dela me restara uma última dúvida, que ela simplesmente não pode me responder, era a minha anjinha que transava comigo ou era ela que fugia de manhã?