As Duas Faces De Sabina
Andas tão linda e bela, com a face perfeita que lhe foi concedida. Quando se fez Sabina, os anjos devem ter louvaminhado e cântico, pois teriam um mortal tão seme-lhante na beleza quanto um sórdido que tem somente de amiga a tristeza. Olhos estonte-antes, intensos e luminosos. Como o olho do gato calado que mata de inveja o outrem que lhe observa intrigado. O corpo saliente onde os homens mais prezavam e os lábios de cor não carente e um vermelho vivo, tal como o sangue que corre em tuas artérias iguais as demais. A pele branda e macia que mais aparentava ser um tecido nunca toca-do.
De fato perfeita e vivia cada vez mais linda devido às outras que a invídia. O ca-belo negro que se perdia na noite e talvez a confundia.
Homens e as rosas não lhe faltavam à orla – dos ricos fidalgos velhos até os mais jovens opulentos, no entanto o matrimônio e o conjugue não lhe eram de gosto agradá-vel; para que ter um servidor se poderia dispor-se de todos. Não almejava uma mansão bucólica junto a uma mansão fina na cidade, com filhos para seu corpo deformar e mais tarde partir e nunca mais tornar – um homem que lhe deleita-se as noites e aos dias quando bem se abrange e deseja-se. Não, certamente não.
Rosas, orquídeas, tulipas, admiradores, promessas, juras, até o padre na missa de domingo lhe olhava dissimulado com os olhos do pecado e quem sabe o tato do Diabo.
Não havia amigas de confiança, somente mulheres confrades para dispor de uma confabulação fútil, em que o tema central era o que fazer, o que comer, o que beber para ficar tão formosa. Os únicos amigos que lhe amavam de veracidade eram os livros, que lhe permitiam e demonstravam um universo de fantasia, repleto de cousas gloriosas e perfeitas, fazendo-a sentir-se naquele mundo de extrema beleza junto a seu lindo gato.
Em uma das missas de domingo empós o povo ortodoxo ter orado o padre pede para Sabina aguardá-lo sentada. Convida-a para fazer parte das mulheres que louvam com sua voz e agradecem ao desconhecido tudo que lhe foi concedido e dado. Ingênua, aceita de bom grado e passa a cantarolar em meio às outras que perderam o destaque.
A igreja após três missas estava assaz lotada e abarrotada de homens que decidi-ram freqüentar o local – sentiram a fé junto à mão do senhor que lhe tocaram com aleluia e então pretenderam a Deus seguir.
O padre aborda Sabina para arrazoar o próximo repertorio e pede-lhe para ir ao fundo do porão da igreja fazer-lhe um favor – buscar um pouco de vinho no acervo per-to dos queijos e das copas eclesiásticas. Ao descer as escadas fúnebres pensa não mais ter fim o tal corredor de pedra, que se aparenta com um poço ou um buraco sem fundo. Achega a frente dos queijos e dos vinhos e ouve um barulho alto e ríspido. Algo que a abate pelas costas e a deixa tonta, bate-lhe novamente com mais força até a queda e a vertigem. Era o padre, que lhe arranca o vestido branco e em seguida a veste íntima, inicia em meio ao chão do acervo de queijo e vinho a violação. O homem da cidade mais adjacente a Deus comete o pior dos pecados. Duas vezes consecutivas a carne lhe fora degustada. O profano herege levanta-se saciado e sai andando como o verdadeiro Diabo.
Sabina humilhada tenta levantar-se, com os olhos embaçados e o sangue da pu-reza mistura com o liquido da perversidade, no meio de suas pernas, não crê. Despenca ao chão mais uma vez. Ergue-se com dificuldade e cai novamente com o rosto em meio ao monte de queijo amarelados. Na terceira queda não se alça mais.
A porta ainda aberta permite a entrada dos roedores que pressentem o cheiro do queijo em sua face. Inicia-se o terceiro deleite, contudo este é dos ratos, que começam a devorar famintos teu perfeito semblante, os olhos, o nariz, os lábios, as bochechas, a beleza, a inocência e a carne. Fartos partem.
Horas depós acorda toda ensangüentada de cima a baixo e sem saber, com a face deformada. Ao subir as escadas da perdição, rememora por que descera ali, e ao sair pelos fundos da igreja sem que o padre maldito perceba, jura reaver seu agravo.
É feriado e todos descansam em suas casas, a cidade parece vazia, inerte e silen-te. A dor atroz vem-lhe reclamar. Uma dor tão agônica quanto à vontade de se matar. Tão crua e fria como um copo de água gelado, despencado no leito cálido em uma noite frígida. Uma lamina funda que retalha em meio ao dedo e a unha.
O espelho que lhe sorria, quebra-se ao meio com sua nova figura. O rosto está despedaçado, desfigurado e até os livros que lhe amavam, sentem sua dor. O seu lindo gato afugenta-se ao vê-la, espantado e assustado, mas com o choro o felino a reconhece, aproxima-se, e a aquece naquela noite eterna de um dia.
Nem a desforra poderia pagar com juros o que acontecera e Deus estava aonde quando tudo incidira, na igreja? No céu? Sentado observando? Perdoando-o? Não im-porta, a vingança é o que de fato importa, nada mais.
Ao sai pelas ruas da cidade deformada a multidão a olha com indiferença e nojo, os homens e as rosas desaparecem e as mulheres dão risadas. O padre fingido não a re-conhece e a expulsa de seu santuário.
Em um dia de festim toda a cidade se reúne dentro da igreja, as mulheres, os homens, as crianças, todos. Sabina como planejara, os trancafiai com correntes e cadea-dos, nas portas e nas janelas. Com o auxilio de seus livros coloca foco no amaldiçoado templo. É possível ouvi-los gritar por socorro, rogarem a Deus por ajuda, ajoelharem-se por clamor e piedade, suplicarem a vida que aos poucos se queima, se esvai como as chamas iguais as chamas para onde irá o padre, que ora mais alto que todos para salvar-se.
Por fim as madeiras despencam e todos estão mortos e queimados. O único so-brevivente é um rato, que o gato de Sabina mata com as pressas e degusta-o com um ar satisfeito e contente, como o de sua dona. Sabina é vingada.