CARTA AO ALFAIATE
“Povo que viveis flagelados”. Sim, flagelados é como vivia você, Aprendiz de alfaiate, talvez nem isso, Aprendiz de Aprendiz, tão baixo o teu soldo, tão ínfimo o salário. Mas tudo parecia ter um breve fim, todas as mazelas e desditas de sua vida, Aprendiz de Aprendiz, quando à noite – horas mortas – você assistia às soturnas reuniões daquele grupo de dissidentes, daquela confraria de revolucionários bahienses que buscavam liberdade do “pleno poder do indigno coroado, esse mesmo rei que vós criastes”.
Afinal, “esse mesmo rei tirano é o que se firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar.” As palavras do panfleto a ser divulgado por toda a Cidade da Bahia não saíam de sua mente, não é mesmo? Aprendiz de Aprendiz, esquece essas coisas. Abandona a companhia desses homens que te levarão apenas ao desagrado do Rei e à desaprovação da Coroa. Sua mãe nunca lhe disse isso? Várias vezes, estou certo disso. Não Aprendiz de Aprendiz, você não a escutou.
Continuou saindo do trabalho e se dirigindo ao porão escuro onde ocorriam as reuniões dos conjuros, do povo que libertaria o povo da Bahia. “Animai-vos Povo Bahiense que está por chegar o tempo feliz da nossa liberdade: o tempo em que todos seremos iguais”. Povo. Muitos anos depois alguém diria que povo é uma porção delimitada de ninguém, um mito da burguesia. Mas isso não pertence ao seu tempo, Aprendiz de Aprendiz, e você realmente acreditava poder libertar o povo da opressão.
Então, peito cheio de esperança, os panfletos começaram, com sua ajuda, a ser distribuídos por toda a cidade. Promessas de liberdade, de igualdade, de fraternidade assaltaram o povo, o seu povo, e deram novas perspectivas a ele. E a você, Aprendiz, deram novo fôlego à certeza que sempre lhe acompanhou de que aquilo iria dar certo. Uma Revolução Bahiense muito maior do que a Francesa, muito superior a ela porque, essa sim, iria mudar a sua vida. Aprendiz, admita, você ficou um pouco orgulhoso de si mesmo, não? Cheio de si por participar de algo tão grandioso, tão importante. Seu nome iria entrar para a história. Aprendiz de Aprendiz dos Santos. Muito bem!
Cadê todos aqueles maus augúrios perpetrados por sua mãe, tão preocupada, tão extremosa, mas tão conformada, coitada! Nada parecia abalar agora a revolução. Nada poderia ir contra ela que fosse suficientemente forte para derrotá-la. Os amigos do bairro tinham muito medo para fazer o mesmo que você fez, ir de encontro ao Imperador. Jamais fariam isso. Mas você, Aprendiz, você fez. E muito bem. Toda a Estrada das Boiadas lera cada panfleto que a Conjuração Baiana (fico me perguntando se você sabia que o movimento iria ser registrado com esse nome) divulgava.
Mas o que você não sabia – disso eu tenho certeza – é que cada grande revolução tem um grande delator. E a sua, Aprendiz, não fugiu a essa regra. Sei que você nunca se esquecerá da marcha que finalmente lhe dera a certeza do fim da revolução. Foi em oito de novembro de 1799. Aquele foi um dia triste. Os condenados (pelo quê, meu Deus? Por lutar pela liberdade?) passaram por você de cabeça erguida, seguidos por uma multidão tristonha. Você olhou para eles já sem esperança, já sem nada. Eu sei que você chorou.
Duvidava agora do acerto de sua decisão, coisa que antes sequer passaria por sua cabeça. Pensou se deveria ou não ir à Praça da Piedade ver a execução dos amigos. Foi. Você duvidava que a visão do horror o ajudasse de alguma forma, mas foi. Dar adeus a tudo o que construíra até ali. Ou dar adeus, simplesmente.
Talvez você esperasse alguma revelação epifânica, um milagre ou algo do gênero. Nada disso ocorreu. Ao invés, havia apenas a multidão que observava entre pasma, chocada e encantada a cena de corpos dependurados pelo pescoço. Mortos.
Urubus rondavam silenciosamente a futura presa. *
* Para os que não conhecem a Revolta dos Alfaiates:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Conjura%C3%A7%C3%A3o_baiana