O caso de um sertanejo persistente

E lá descia ela, insinuante, com seu vestido colorido e fita rosa no cabelo, sempre fogosa e despreocupada, invariavelmente tendo os pés descalços, a ladeira escorregadia, ladeada de heras e mato verde, tomando o caminho da casa velha. Nos braços, uma gasta bacia recheada de pobres vestes.

No passado, a casa era o reduto sedutor de uma fazenda prestigiosa, imponente, recinto deveras requisitado, porém meio que anônimo e selecionado, onde remediados festeiros e quase sempre embriagados coronéis expunham seus poderes, vícios e conflitos, paparicados pelas chamadas “madames de vida fácil”, pelos jovens políticos de pouca expressão e tão desejosos de melhor prestígio, e pelos contumazes bajuladores trapaceiros. Todavia, naqueles dias chuvosos, e transcorridos tantos anos, o sobrado mais parecia um destoante retrato, certamente um desenho mal acabado daqueles áureos momentos de danças, tragos, luxúrias e amores clandestinos. Na real, uma linda e vetusta vivenda, repleta de história, dominada, lamentavelmente, pelo abandono. Um cenário de boas, intrigantes e de já longínquas recordações.

Nos fundos desta centenária moradia - onde freqüentemente brilhavam os bailes e saraus os mais impecáveis, e cujos acontecimentos picantes davam-se aos cantos dos galos madrugadores - ainda se encontrava, mesmo que maculado o seu escoadouro pelos estragos indeléveis do tempo, uma mina de águas contraditoriamente límpidas, abundantes, portanto uma dádiva ante o isolamento daquele sítio bucolicamente encravado nos sertões baianos.

Lívia, na beleza madura dos seus vinte e cinco anos, ali, sempre no amanhecer das sextas-feiras, lavava as roupas de sua patroa mal humorada, após o quê as estendia numa velha cerca de arames perigosos porque rudemente pontiagudos. Apesar de penoso o trabalho, pois que nunca findado antes do inclemente sol do meio-dia, tal momento se constituía no único em que ela, longe da voz e dos olhares vigilantes da megera senhora, desfrutava de liberdade! Ali, sem espreitas castradoras, Lívia relaxadamente lavava, cantava e imaginava...

Era até inconcebível duas criaturas viverem naquele sítio desbotado, disforme, esquecido. As mulheres habitavam uma casinha modesta, no alto de uma considerável elevação, contígua à casa velha abandonada, e que mais parecia ser uma antiga moradia de empregados, ou mesmo um pequeno alojamento de escravos domésticos, tal como os dos tempos idos da rude escravidão, então refeita para abrigá-las clandestinamente. Aos fundos da humilde residência ficava um minúsculo quarto onde dormia e passava a maior parte do tempo o velho Juvenal, resfetelado na sua surrada rede, armada na improvisada varandinha lateral. “Seu Nado”, assim sempre tratado pelas mulheres, era o típico “quebra-galho” naquelas paragens. Jardineiro, carregador de água, tratador dos poucos animais ali existentes, beirava já seus 70 anos e muito pouco falava. Aliás, o seu comportamento silencioso, macambúzio, às vezes até arredio, era o fiel retrato do lugar. Parecia ocultar algo de grave atinente ao passado de sua desconhecida vida sertaneja.

Dona Germana, a amargurada patroa, dada a trajetória atribulada de seus 50 anos, era uma velha precoce, uma viúva infeliz, avarenta e penosamente desfigurada, razão das visíveis cicatrizes que trazia, tanto na sua face escaveirada, quanto nas costas alquebradas, como se houvesse, tempos atrás, sido castigada ao molde como eram, absurdamente, supliciados os negros escravos. Nascida durante uma viagem pelo norte das Minas Gerais, cedo ficou órfã de mãe, antes mesmo de completar sete anos, e praticamente foi relegada, no vigor de sua adolescência, pelo pai, que lhe concedeu a guarda, sem maiores recomendações, a uma tia já de avançada idade e de parcos recursos. Assim, ainda muito jovem, aventurou-se pelo mundo, fugindo para os sertões baianos. Premida pelas provações, sem cuidados ou conselheiros, ganhou a vida, durante algum tempo, à custa do corpo. Dramática experiência! Inesquecíveis padecimentos!

Dado o seu cotidiano de dificuldades e constrangimentos, viu-se obrigada a um casório certamente indesejado, contraindo núpcias, logo no início de uma atribulada gravidez, com o poderoso Coronel Elesbão do Carmo Sincurá, homem rude, sovina, de hábitos poucos recomendáveis, a exemplo da constante má vontade para banhos e sem quaisquer outros conhecimentos de uma elementar higiene. “Sinhô do Carmo”, como era alcunhado, padecia, também, com irritante regularidade - face, inclusive, a sua desmesurada gula - de crises agudas de gota, mal que lhe tirava a mobilidade, causando-lhe dores insuportáveis, cujas conseqüências recaíam na inditosa Germana. Portanto, de esposa compulsória e infeliz, degradara-se, ainda quando vivo o violento coronel, em maltratada serviçal. Certamente, núpcias para um calvário!

Lívia aturava os recalques e desconfianças daquela viúva – que lhe afiançava tê-la resgatada das mãos de uma fugitiva empregada da fazenda, ainda quando bebê - contando os dias, as horas e os minutos para se livrar de tamanho infortúnio. Afora o “Seu Duda”, simpático tropeiro que de mês em mês, além das novidades das outras paragens, trazia, no lombo já combalido de seu velho burro, as mercadorias indisponíveis naqueles cerrados desérticos, poucos viventes aventuravam-se por aquelas bandas esquecidas. E nossa jovem prisioneira, ciente de sua inquietante formosura, de seus desejos e desditas, ao entoar cânticos de autêntica ganhadeira à boca da mina, imaginava ser resgatada por príncipes e ilustres fidalgos, quando ousado era o sonho; ou talvez a chegada repentina de algum soldado perdido, até mesmo de um errante viajante, quando menos pretensiosa era a sua imaginação...

Diariamente, sem tréguas, a moça limpava a casa, fazia a comida, dava banho na patroa, aplicava-lhe, obrigatoriamente, todas as noites, as maçantes massagens nas decaídas costas vítimas dos pertinazes bicos de papagaio, além de lavar-lhes a roupa um tanto mal cheirosa, às vezes recheada de vestígios abomináveis. Dona Germana era mesmo uma velha ao completar apenas o seu cinqüentenário!

Neste dia chuvoso em que mais uma vez descia ladeira abaixo, sedutora e como se adolescente ainda fosse, saltando as poças lamacentas que se apresentavam aos seus pequenos passos, Lívia, tendo lavado as primeiras peças íntimas de sua patroa e, logo após, quando as pendurava diante da fonte de sua labuta semanal, pressentiu um vulto se aproximando e, ao virar-se com presteza, pensando ser o velho jardineiro, deparou-se com um homem maltrapilho, todavia portador de terno sorriso, o que afinal lhe configurava um semblante confiável e acolhedor. Algo estava para acontecer...

Num primeiro momento, tolhida pela presença inusitada, em especial ali naquele ermo sem expectativas de novidades, e muito menos de gente, sentiu calafrios na nuca e um aperto instantâneo na garganta. Entretanto, vencidos poucos segundos, tendo o desconhecido direcionado um olhar humilde, comovente até, serenou-se, largou das camisolas amareladas e, com igual ternura, devolveu seu olhar de inocência e juventude àquele ente vindo do imponderável...

A voz rouca e de baixa intensidade do homem, que aparentava ter dobrado o meio século dos anos, trouxe-lhe, sem saber por qual motivo, alguma lembrança, identidade, suspeição, como se dela tivesse conhecimento, como se, na verdade, não fosse a primeira vez que a escutasse e, principalmente, porque emanava de alguém que inexplicavelmente lhe parecia cúmplice. São caras sensações que provocam efeitos inesperados ao espírito, sutilmente marcantes, e que quase sempre não se compreende, com facilidade, as suas causas.

Perguntou-lhe, com rara educação, o homem: “qual o seu nome, bela menina?” Ela, tímida e vagarosamente, respondeu: “Ma-ria Lí-via...” “Por que você lava tanta peça de roupa sozinha, aqui nesse abandono? A moça não conta com a ajuda de ninguém, de uma amiga, ou uma irmã...? Pela quantidade imagino que a sua labuta se estende por todo o clamor do dia, estou certo moça?”

Mais calma e confiante Lívia educadamente respondeu: “É minha obrigação de toda sexta-feira. Se não venho labutar na pedra, a Dona Germana me castiga. Sou a sua única companhia e, por essas bandas de meu Deus, não conheço amizade. E o Seu Nado, coitado, está cada vez mais imprestável para o serviço”.

O desconhecido, contraindo abruptamente o seu rosto já enrugado pelos anos de vida e sofrimento, demonstrou intrigante preocupação com a exposição sincera de Lívia e, buscando nova respiração, recuperando os seus desenhos faciais, de imediato lançou nova inquirição: “Como se chama mesmo a Senhora Germana? Pode-me dizer também qual idade ela tem?”

Agora desconfiada, Lívia notou que o tom de voz do visitante, antes sereno e compassado, transformara-se num premente e angustioso som verbal, como se uma imediata e incômoda sensação estivesse a perturbá-lo, transmutando aquele semblante afável e tranqüilo. Ainda assim, novamente respondeu: “Germana de Aguiar Sincurá. Fez 50 anos inda no mês que se foi”.

O homem, como se acuado por uma assustadora cascavel, que sai da toca quando das chuvas torrenciais de novembro nas plagas sertanejas da Bahia, arregalou seus olhos singularmente negros, tirou o seu chapéu de palha desgastado e, sem emitir qualquer som, passou a fitar o horizonte acinzentado, sombrio, como a lembrar de coisas perdidas, talvez irrecuperáveis, recordações provavelmente inditosas. Daquele termo permeado de majestosas serras, passou a contemplar, com extrema acuidade, o velho casarão, suas arcadas e espaçosas varandas, seu telhado triangular, dando a entender que algum antigo “filme” rodava em sua mente, buscando identificar fatos e pessoas, situações ali fortemente vivenciadas.

Sem pestanejar o que fazia, o desconhecido incisivamente repetiu: “Germana de Aguiar Sincurá...”

Lívia, diante daquela estranha reação, indagou-lhes se estava bem, o que se passava, ou se conhecia a sua malvada patroa. No primeiro momento, não obteve qualquer atenção ou resposta, pois o homem, absorto, permanecia calado, com o olhar entristecido voltado para lugar nenhum. Passados alguns minutos, quando Lívia sutilmente já ensaiava sua saída, livrando-se daquela situação desconfortável, ele a interpelou levemente pelo braço e lhe pediu, com cativante brandura, que se sentasse, pois tinha algo sério a revelar. Assim, recuperando a serenidade anterior, disse à jovem: “Perambulo, doce menina, pelos rincões sertanejos faz mais ou menos 10 anos, desde quando recobrei parte de minha afetada memória. Recordo-me, apenas, que apanhei muito em razão de um dito crime de agressão a mim imputado e do qual tenho confusas lembranças, tendo sido, sem qualquer julgamento ou direito de defesa, jogado num manicômio, depois numa cadeia, sofrendo todas as agruras que tais depositários de gente podem violentamente proporcionar”.

Lívia, incontinenti, interrompeu o discurso amargurado do desconhecido e o interrogou: “O que é esse tal de manocômio, senhor?”. “Não, não, o nome não é manocômio, menina e, sim, manicômio, um lugar insalubre, deprimente, violento, sujo, onde são desumanamente depositados os tidos como loucos e alucinados”. “Deus me proteja! O senhor é um deles?”

O homem, percebendo as dificuldades da jovem e, de certa forma, algum medo embutido nas palavras e na entonação agora trêmula de sua voz, procurou tranqüilizá-la, usando da sua inegável paciência, sentimento provavelmente herdado em face dos anos de injusta clausura que experimentara: “Não moça, nunca fui e nem sou louco. Apenas fui vítima da arbitrariedade e do ódio de meus inimigos”.

Passaram-se alguns segundos e o silêncio foi novamente rompido pela jovem: “Quais são os seus inimigos senhor? Aliás, sequer me revelou o seu nome!”

“Ia dizer-lhes, moça. Quando lhe pedi que novamente sentasse é porque tinha e tenho uma longa e triste história para revelar, pois que, diante do que vejo agora e do pouco que já ouvi, tenho a certeza de que encontrei o que tanto buscava”. Sem intervalo, Lívia comentou: “O senhor me parece agora mais estranho... sei lá... afinal, qual é o seu nome, senhor?”

“Chamo-me Florêncio Batista Sincurá. A moça tem mesmo ouvido este último nome em várias oportunidades, não é mesmo?”. “Sim senhor, é o mesmo nome de minha patroa! O que há de errado nisso, senhor?”. “Tudo”. Respondeu com prontidão o visitante. Ao fazê-lo, direcionou o olhar para os céus, como a temer breve tempestade.

Uma rajada de vento inesperadamente levantou poeira e, com rara violência, balançou as primeiras peças de roupa que Lívia já havia lavado e estendido na cerca enferrujada. O céu se fechava ameaçadoramente sobre aqueles dois seres ali isolados, parceiros desconhecidos sob um silêncio ímpar e amedrontador. Interessante que neste breve sacolejar de folhas e vestes, os dois perceberam, como se saindo de improvisado esconderijo, o velho Nado esgueirando-se por detrás da imponente mangueira, lá no alto, partindo, logo após a percepção indesejada, em inacreditável velocidade, na verdade a que lhe foi possível, dados os seus ossos e músculos escalifados pelas mazelas do tempo.

Passado o susto, Lívia retomou a prosa: “O que há afinal de errado? Quem é mesmo o senhor e o que tanto procura?”

“Sobre aquele senhor assustado – disse Florêncio - arriscarei depois um palpite. Mas, como lhe dizia minha jovem, sou Florêncio Batista Sincurá, antigo escrivão de cartório de alguma localidade perdida nesses campos áridos sertanejos. Nunca tive posses e nem prestígio, apesar de, segundo me afiançaram, ter sido sempre bajulado pelos grandes coronéis e políticos enriquecidos, os quais viviam invariavelmente sob as desconfianças da lei. Tempos de vergonhosa impunidade! Diziam que eu tinha, além de boa escrita, o dom da oratória, além do respeito dos cidadãos”.

Lívia, interrompendo o início da narrativa, perguntou de modo exclamativo: “Ah! Então o Senhor é um ex-padre? Por que abandonou as orações? Isso não é pecado mortal?” Ao que Florêncio, sorrindo e com dedicada paciência, explicou: “Não, querida jovem, eu não cometi pecado algum e nem fui e muito menos desejei um dia ser padre”. (Disse essas palavras ainda rindo, mas sem menosprezar o desconhecimento da moça).

Retomando a explicação, disse: “Alguém que tem boa oratória é um sujeito bom de gogó, de discurso, que fala bem, com desinibição, certo?”. “Certo, Senhor, desculpe a minha ignorância, pois nunca fui de conhecer mesmo as coisas e pouco converso com gente tal como o Senhor”. “Não carece de se desculpar, não se impaciente com tão pouca coisa! Terá tempo para aprender tantas coisas bonitas nessa vida de meu Deus!”.

Lívia, posicionando-se melhor, encostou cuidadosamente suas costas na pedra de enxaguar e passou com maior atenção, agora totalmente silenciosa, a escutar aquele indivíduo estranho, pois ao mesmo tempo afável e misterioso.

O desconhecido continuou a sua narrativa: “Ainda não me lembro onde nasci. Muito menos recordei do período de minha infância, dos meus pais, enfim da minha família. Recordo-me, muito vagamente, de ter, durante um concorrido baile, recebido um golpe ferino na minha nuca. De acordo com os médicos que me salvaram, acordei de fato, ou seja, mais aprumado, somente 13 anos após esse infortúnio, num leito empobrecido de um hospital militar da Capital da Colônia, a bela Cidade da Bahia, ainda quase um sonâmbulo, de tudo tendo esquecido, inclusive do meu próprio nome. Tinha, naquela oportunidade, 38 anos. Foi uma sensação de agonia para mim inesquecível. O que me acalentava a vida, mais particularmente ao cair das tardes, era o belíssimo pôr-do-sol que testemunhava sentado na varanda do meu leito hospitalar, sobre o baixo relevo da Ilha de Itaparica, sol que, ao se despedir poeticamente, rabiscava o seu traço singular de luz por sobre as serenas e profundas águas, tão azuis, da histórica Baía de Todos os Santos!

Após alguns dias desse despertar melancólico e preocupante, tendo-me entrevistado seguidas vezes com o afável Doutor Baraúna de Castro, médico psiquiatra de grande conceito, fui ajuizando, ainda que atabalhoadamente, sobre as parcas informações que este bom profissional me passava aos poucos e que eram igualmente poucas sobre a minha existência. Nunca soube quem eram, na realidade, os seus informantes”.

Lívia, intrigada, interrompeu a narrativa: “o que é mesmo um psiquiatra?”. “Desculpe-me, querida jovem. É um médico que cuida especialmente de doentes mentais, de loucos, certo?”. “Bom, então o senhor é mesmo um louco?”. “Não tanto!”. Exclamou o misterioso visitante, rindo descontraidamente, uma vez mais, naquela interessante palestra. “Não, repito: não sou louco. Fui - conforme lhe disse - uma vítima dos meus algozes, apenas isso!”.

Continuando a narrativa, Florêncio explicou: “Bom, das entrevistas com o Doutor Baraúna, soube que havia sofrido uma forte e profunda agressão na minha nuca, protagonizada por um coronel famoso dos sertões da Bahia, dono de muitas terras e de escravos e cuja maior fama era a de supliciar as mulheres com as quais mantinha relações mais íntimas. Adianto-lhe, moça, que terei todo o cuidado com as palavras para não chocá-la”.

Lívia, então, perguntou-lhe: “E por que este perverso coronel lhe bateu, lhe furou?”. “Na verdade, ainda não sei bem, mas, diante das peças desse meu ‘quebra-cabeça’ que tento persistentemente completar, imagino que poder desmesurado, absurda impunidade e ‘mulheres de vida fácil’ foram os motes prováveis que resultaram na covarde agressão que sofri. Essa é a minha melhor reflexão”. “Como assim, senhor?” Novamente inquiriu Lívia, demonstrando pouco entendimento da narração.

Florêncio, percebendo a dificuldade de Lívia, continuou a sua exposição: “relembrando, eu era um dedicado escrivão de uma localidade sertaneja, situada, aqui, nesses ainda hoje esquecidos rincões, quando se deu a desgraça, pois, conforme este relatório, que aqui trago nas mãos, do manicômio em que me jogaram em Salvador, bem antes do Doutor Baraúna me conhecer e me tratar, consta o seguinte:

“O paciente Florêncio Batista Sincurá - natural dos sertões baianos e desta região para aqui transportado, em caráter emergencial - possui razoável escolaridade, tendo sido escrivão de cartório, chegou nesta unidade de tratamento acometido de seguidas convulsões, febres altas e persistentes, alternando estados de letargia e de violentas reações, apresentando profundo corte na parte posterior da cabeça e vários hematomas faciais. Imediatamente medicado, percebeu-se que o referido indivíduo sofria de perda parcial da memória, não sabendo ao certo sobre suas origens, parentes e nem tão pouco do grave crime a ele imputado, então cometido na sua localidade certamente de residência.

Às vezes irrequieto, às vezes sereno, tem, entretanto, demonstrado progressos tanto no seu comportamento social, quanto respondido satisfatoriamente ao tratamento a que vem sendo cotidianamente submetido, razões pelas quais atestamos, de bom alvitre, o seu devido encaminhamento à unidade prisional competente, onde deverá cumprir, por mando da justiça, a sua sentença de agressor juramentado”.

Sem descanso, continuou o homem a sua triste narrativa: “Fiquei confinado três anos no manicômio, sofrendo com choques e palmatórias, ingerindo remédios que me sufocavam a garganta e que me tiravam do ar literalmente. Depois permaneci quase dez anos no presídio estadual, em cela única, pois afinal eu tinha uma “ficha de louco”, local onde conheci os tipos mais infelizes e degenerados da classe humana.

Após esse período de infeliz reclusão, ganhei licença para iniciar tratamento médico especializado e, nesta oportunidade, conheci o Doutor Baraúna, homem que me recolocou no plano verdadeiro da vida, ajudando-me, inclusive, na reviravolta do meu caso – ou seja, o tal do crime que me imputavam –, contratando advogado qualificado para estudo e posterior liberação da minha causa penal. Hoje reconheço que isso se traduziu no retorno a minha vida, ainda que passados já praticamente 25 anos de anonimato!”

“E o que esse tal de advogado descobriu?”. Perguntou - agora muito mais interessada a jovem Lívia. “Descobriu, para a minha redenção, que o autor da grave agressão a mim injustamente imputada, feita a uma jovem de bordel, que afinal lhe deixara irrecuperáveis seqüelas, foi, na verdade, um temido coronel da região de Macururé, inclusive uma localidade não muito distante daqui e para a qual desejo, em breve, retornar”.

Prosseguindo com o seu relato, disse Florêncio: “Não era um cidadão e, sim, um covarde criminoso, um fazendeiro de muitas posses, violento, arrogante, e cujas improbidades, apesar de ser ele um parente próximo, eu havia delatado para as autoridades judiciais da época. Conforme Doutor Baraúna, secundado pelo competente advogado, eu era um simples e correto escrivão, ciente de minhas obrigações legais. Este homem, também famoso pela sua libertinagem, padecia de amores por uma jovem senhorita de vida vadia – perdoe-me o termo, menina! – recentemente contratada para servir aos coronéis e políticos da região, os quais freqüentavam uma bela e imponente fazenda, chamada “Pouso Prazer”, nome, portanto, bastante sugestivo. Era um local onde aconteciam grandes festas e bagunças com regularidade e, logicamente, escondidas da maioria dos moradores simples das localidades próximas. Apenas pessoas de poder e algum prestígio tinham acesso a tais encontros. Era, hoje me parece, uma casa de aventuras as mais comprometedoras!”

Sem permitir qualquer interpelação da jovem curiosa, continuou: “O virulento coronel - parente com o qual eu não me relacionava - então apaixonado pela bela e disputada rapariga, soube que um jovem e inexpressivo cidadão lhe era forte concorrente, sobretudo porque citado e cortejado abertamente pela sua preferida quenga. A situação se agravou quando, do alto de seu inquestionável poder e dominado pelo orgulho, o Coronel Sinhô do Carmo soube da inesperada gravidez da jovem criatura, obrigando-a, encolerizado, sob palmatórias e constrangimentos, a delatar o inditoso reprodutor.

Ao identificar o seu desafeto, tocaiando como raposa faminta, o Coronel, num dia de danças na famosa casa de regalos, aplicou-lhe covardemente pelas costas um certeiro golpe com o cabo de seu fuzil e, não satisfeito, passou a castigá-lo com a sua garbosa bengala na cabeça, mesmo que já desfalecido o jovem, pois que, na sua irada compreensão, este roubara a sua desejada menina, engravidando-a. Imediatamente, tomado ainda de incontrolável cólera, partiu para a assustada rapariga e desferiu-lhe, propositadamente na face, várias chibatadas, tal como fazia seu velho e não menos perverso pai, com os seus pobres escravos.

Dada a sua autoridade, o seu prestígio político e o seu poder econômico, o desatinado coronel forjou, com a omissão e conivência dos presentes e das pequenas e dependentes autoridades locais, uma nova versão para o ato que covardemente cometera, atribuindo, com a ajuda dos falsos testemunhos, ao jovem ferido as graves e deformadoras agressões feitas à apaixonada rapariga. Havia, não há dúvida, contra a vítima do violento Coronel, um possível enredo culposo: um jovem bastante conhecido, na ânsia de manter a sua reputação, não queria assumir um rebento produzido numa “mulher da vida” e, esta, ao delatá-lo publicamente, sofrera a covarde agressão, em vingança da honra! Tudo conspirou, portanto, para o enquadramento criminoso do jovem escrivão.

Durante o tempo em que permaneceu tratando das suas delicadas feridas, expostas no rosto e nas costas, confinada numa casa de saúde clandestina, a jovem rapariga deu a luz a uma menina, sendo, sob total discrição, ambas transportadas para uma isolada fazenda pertencente ao grande espólio do violento coronel - justamente nestas bandas perdidas em que agora conversamos - na companhia do qual a rapariga sofreu inesquecíveis reveses, recebendo tratamento desumano e tendo de cuidar, sob surras e freqüentes constrangimentos, das suas chagas doloridas e incuráveis. Como fiel testemunha dessas adversidades, um velho capataz do famigerado cidadão, homem de extrema confiança, cuidava da segurança e do anonimato daqueles seres maculados pela tragédia.

O velho algoz, reconhecidamente astuto, confinou as duas infelizes na tapera que ficava ao fundo, numa considerável elevação, que afinal lhe dava melhor esconderijo, da mesma propriedade onde ocorrera, anos antes, o vil delito. Ou seja, na sua mente maquiavélica, acostumada a produzir os mais insanos desatinos, conspirou, e quase deu certo, que jamais qualquer vivente imaginaria, justamente ali, ter ele escondido suas vítimas! Um plano, não há dúvida, audacioso!

Feliz ou infelizmente, dados os graves infortúnios vivenciados por esta mulher da vida, transformada num ente invisível e sofredor, o coronel logo faleceu, vitimado por um ataque fulminante do seu embrutecido coração.

Meu persistente advogado, que me requisitou o seu anonimato, passados todos esses anos de incansável procura, na semana passada, dizendo-se certo de ter finalmente achado o provável local onde uma mãe infeliz e sua filha desconhecida estariam vivendo, possivelmente guardadas e servidas por um velho empregado de fazenda, me fez acreditar que realmente aqui nestas terras pertencentes ao atual município de Canudos – sítio dramaticamente marcado pela história de sua gente resistente – elas poderiam ser encontradas”.

Lívia, que esteve atenta a toda essa longa e dramática história, foi sendo tomada pelos mais díspares e fortes sentimentos, perturbada com todo o conteúdo daquela antes impensável narrativa, emanada de um não menos impensável vivente que, de chofre, ali estava a sua frente.

Derramando copiosamente lágrimas de desespero, arriscou nova pergunta ao homem: “O que o senhor deseja me dizendo tudo isso?”

Florêncio, com uma serenidade que nem ele mesmo apostaria ter num momento de tão grave emoção, por tanto tempo e por diversas razões esperado, mansamente respondeu: “Quero e devo dizer, querida jovem, que a sua patroa é, na verdade, a sua sofrida mãe e que este desconhecido, chegado de surpresa e marcado violentamente pelas injustiças dos homens, é verdadeiramente o seu pai. Aquele que fugiu, em tão desastrada carreira, é o velho agregado do famigerado Coronel, seu principal cúmplice, daí o seu susto e conseqüente fuga ante a minha inesperada chegada nesta perdida localidade!”

Ao ouvir tal revelação, Lívia jorrou lágrimas como nunca antes havia sucedido, apesar de todo o padecimento que vivenciava, sem tréguas, sob o controle daquela megera, e que agora - não atinando se para sua alegria ou irrecuperável tristeza - sabia ser a sua mãe. Dolorosa contradição! Infeliz conhecimento!

Voltando, de imediato, o seu olhar para o lado contrário da cerca onde se encontrava, Florêncio, esquecendo-se momentaneamente da jovem, tomado de irrefreável coragem, rumou decidido na direção do velho sobrado. Armando-se dum pau afilado que servia de amparo a um remendo mal feito no cercado, subiu apressadamente em uma das muretas que davam acesso à porta principal da abandonada edificação e passou, com extremada força, a raspar, logo acima da imponente porta, na parede desgastada a tinta amarelada. Em poucos minutos apareceram letras rebuscadas da antiga e famosa inscrição que soberbamente recepcionava aos visitantes daquele intrigante lugar: “Aqui é o Pouso do Prazer. Entre e Regale-se!”.

Mais comedido, demonstrando um misto de vitória e cansaço, Florêncio se acomodou na mesma mureta em que havia subido para o seu gesto derradeiro de confirmação daquela procura incansável, e recuperando a ternura inicial dos primeiros momentos, falou pausadamente: “Esperei muito por esse momento. Agora, com a graça de Deus, e com o apoio de dois grandes profissionais, vejo, aqui, tão bela e real, a filha que jamais havia tocado. O que serei ou o que terei, daqui em diante, eu deixo, com serenidade, a critério da sua mais sincera e boa vontade”.

Desnorteada, como se tudo fosse mesmo um terrível pesadelo, como se aquele ente vindo do nada, relatando toda aquela dramática história, permeada de crimes e injustiças, história que afinal lhe trouxe graves revelações, enfim, como se tudo, também, jamais tivesse real significado para a vida que levara até aquele inusitado encontro, Lívia, quase desfalecida, sentou-se, encobriu o seu rosto com suas mãos trêmulas - rosto que agora era o fiel retrato de uma tristeza ímpar, extremamente dolorosa - e desabou lágrimas incontroláveis.

Florêncio, evidentemente tocado pela reação da jovem, mais ainda pela certeza de ser aquela menina, tão sofrida e injustiçada pelos desregramentos de outrem, a sua tão desejada filha, não se conteve e, abaixando-se ao seu lado, pegou-a nos braços e ambos, perdidos em meio àquele silêncio funesto, amedrontador, choraram compulsivamente... Uma tromba d’ água sertaneja, de carona com os desvairados açoites dos ventos, precipitou-se, abruptamente, sobre aquele cenário de dramas e revelações.

Absortos a tudo que os rodeava, recolhidos sob o gasto teto da pequena varanda, enlevados por melancólicas reflexões, e ainda abraçados sob aquela ventania insistente, ouviram dois seguidos estampidos vindos do alto da íngreme elevação. Atônitos, debaixo de tormentoso aguaceiro, subiram apressadamente a ladeira e, ao adentrarem à pequena e humilde vivenda ali existente, depararam-se, assustados, com dois corpos sinistramente estendidos e dos quais já escorria escuro sangue. Ao lado de um deles, bem próximo à mão direita, logo perceberam um velho revólver preto e como se ainda fumegante. Lá estavam, inermes e de uma feiúra ímpar, os cadáveres de Dona Germana e de “Seu Nado”.

Visitada por forte desânimo, sem bem atinar o que fazer e até sem conceber o que realmente deveria sentir, sobretudo após uma seqüência impensável de fatos e de novidades as mais inusitadas, Maria Lívia desfaleceu. Acolhida pelo visitante, agora, bem entendido, o seu nunca antes imaginado pai, foi por este imediatamente carregada e levada, estendida como foi humanamente possível, no lombo de um velho cavalo pertencente ao finado “Seu Nado”. Florêncio, dadas as tenebrosas experiências que passara na vida, pois perseguido e, afinal, vítima potencial de crimes que verdadeiramente não cometera, tratou de pegar algumas peças de roupa da jovem infeliz e, sem demora, evadiu-se daquela sinistra localidade o mais rapidamente possível.

Vencidas quase duas léguas de preocupante caminhada, agora sob uma chuva fina que trazia, de carona, uma brisa friorenta, Lívia despertou e, para surpresa de Florêncio, permaneceu muda, por bom espaço de tempo sem dizer qualquer palavra, como se exausta ou então convencida, agora, da realidade que havia, de forma tão inesperada, invadido e até roubado o seu cotidiano inditoso. Florêncio entendeu que, com aquele silêncio, a jovem sofrida sinalizava compreender que novos horizontes estariam certamente traçados para a sua vida, vida, não há dúvida, até aquela marcante experiência, de poucas alegrias e raro conhecimento.

Após passarem a noite numa humilde casa sertaneja, na qual apenas habitava um velho desgrenhado, mas que, logo nos primeiros instantes de conversa, demonstrou inegável sabedoria, pai e filha, ainda que exaustos física e emocionalmente, logo no alvorecer do dia, caminharam até a estrada de chão batido, pois somente aí, onde, como afinal conseguiram, pegaram uma providencial carona num caminhão que se dirigia para os sertões de Macururé.

Nesta modesta localidade permaneceram seis meses, praticamente silenciosos e negociando, sem tantos tinos, com os olhares questionadores de seus pacatos residentes. Aí Florêncio, em face de sua educação e, sobretudo, pelo fato vantajoso de saber ler e escrever, qualidade, naqueles tempos e naquelas esquecidas paragens, inegavelmente dadivosa, ganhou alguns trocados lendo e escrevendo cartas e correspondências diversas.

Desiludido porque nada conseguira saber do seu passado naquelas bandas, sequer reconhecido, logo ensaiou nova partida. Sempre cuidadoso com a sua bela filha, seguiu anonimamente para a capital da Bahia, não mais dando qualquer notícia acerca de seus futuros passos.

Roberto Dantas

betodantas
Enviado por betodantas em 02/05/2010
Código do texto: T2233322
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