O segredo de Rafinha
Rafael ou Rafinha como era conhecido. Era um garoto de classe média como outro qualquer a não ser por uma diferença. Aos 11 anos, estudava muito e tinha sede de saber. Um tanto arredio, não era companhia para o que a maior parte de seus amigos da mesma faixa de idade curtiam. Não entendia como podiam perder tanto tempo com futilidades. Andavam sempre com mp3 nos ouvidos curtindo a batida da moda, insuflada pelas FM´s constantemente. Rafinha não gostava daquilo e preocupava-se com coisas que a maioria ignora, preferindo viver no embalo das tentações eletrônicas, horas no MSN batendo papo furado. Sentia-se deprimido ao assistir o noticiário da TV sempre com notícias de catástrofes, corrupção política, bandidagem em ação e tantas outras coisas que o deprimiam. Recentes catástrofes no Rio e São Paulo, com desabamentos e mortes, enchentes em outras áreas, parecia que o planeta estava se desmanchando. Chegava o fim de semana e seu pai anunciara que iriam para a praia. Rafinha preparou-se para o evento, gostava de sentir a brisa do mar e ler a sombra das palmeiras.
Chegaram a praia já tarde da noite onde seu pai mantinha uma casa para o veraneio da família. Depois de uma viagem estafante, com engarrafamentos constantes estavam todos cansados e Rafinha caiu na cama como uma pedra. Mal teve tempo de engolir um lanche. Acordou bem sedo. Ainda estavam todos dormindo e ele resolveu dar uma espiada na praia. Lavou-se rapidamente e correu para a praia. Mas quando chegou ao limite da rua com a areia. Parou e entristeceu-se com a sujeira que transformava a areia em uma grande lixeira. Para onde a vista alcançava, sacos plásticos, tampas, garrafas e toda sorte de restos de embalagens entulhavam a areia mostrando um panorama desolador.
O menino andou escolhendo onde pisar e resolveu voltar. Descobriu sacos de lixo no armário da cozinha e muniu-se de uma vassoura de jardim. Pos os sacos embaixo do braço e começou a juntar o lixo e limpar febrilmente, pelo menos a parte da praia diante de sua casa. Lá pelas tantas quase tropeçou em um grande pássaro morto, um Albatroz, com manchas de óleo nas azas e tinha as pernas esticadas parecendo que sofrera muito ao agonizar antes de morrer. Rafinha entristeceu-se e voltou para buscar um estilete em sua mochila. Precisava saber de que o pobre animal morrera. Não fazia muito tempo e o processo de decomposição ainda não começara. Começou a abrir o animal e aterrorizava-se com o que encontrava. Tampas de garrafa, sacos plásticos e até um patinho de plástico. Rafinha carregou o animal morto para a sombra de uma palmeira. Buscou uma pá e o enterrou. Continuou sua tarefa cansativa de recolher o lixo e já contabilizava 6 sacos de 60 litros. Nem vira o tempo passar até que sua mãe chamou para o almoço. Quase não comeu, preocupado porque ainda teria muito trabalho até livrar a praia de toda aquela imundice. Era sábado e ao final do almoço, seu pai anunciou que na manhã seguinte iriam dar um passeio de lancha até a ilha em frente.
A ilha quase deserta, habitada apenas por algumas famílias de pescadores, possuía uma pequena pousada e uma lanchonete. Margeando a areia havia uma vegetação verde e muitas flores entre árvores frondosas que encantaram o menino. Uma clareira mostrava uma estreita trilha e algumas borboletas exerciam seu vôo irregular de um ponto a outro, como se saltassem entre poleiros suspensos no ar. As borboletas voam assim e não suavemente como os pássaros.
Rafinha pensava nisto e andava devagar então abriu-se outra clareira maior e circular como um jardim redondo, rodeado de lindas flores. Rafinha aspirava o perfume das flores e pensava que nem tudo estava perdido. Ainda havia muita coisa bela para ser admirada. Então ouviu um zumbido e um pequeno objeto brilhante descia do céu em sua direção. Ao aproximar-se parecia uma pequena nave de brinquedo como algumas que vira em um vídeo game de seu amigo Luka. Deveria ser controlada a distância e bem que gostaria de ter um brinquedo desses. Mas a pequena nave aproximou-se mais e pairou suspensa no ar diante dele. Rafinha entre assustado e curioso não entendia nada. Então a nave começou a crescer aumentando gradativamente de tamanho. Mas tudo o mais a sua volta crescia junto e isso o fez compreender que na verdade ele estava encolhendo. Então uma voz suave de dentro da nave falou.
– Não tenha medo. Entre e vamos dar um passeio. Tenho coisas muito importantes para mostrar a você. Rafinha sentia um pouco de medo, mas a idéia lhe fascinava então entrou. Sentou-se e a voz disse.
– Use o cinto. Ele obedeceu e a nave começou a mover-se voando suavemente em direção a floresta, ziguezagueando entre as árvores e aos poucos ganhando velocidade.
– Você vai agora conhecer um pouco do seu planeta onde a mão do homem ainda não alcançou. Pelas janelas da nave a paisagem desenrolava-se revelando uma vegetação rica em cores vivas e repleta de pássaros e borboletas que enchiam de colorido e movimento a paz da floresta. A nave subiu mais e ganhou altura. Dela ele via as regiões geladas onde grandes ursos brancos andavam a procura de alimento e pingüins espanavam-se ao sol. Depois a nave desceu e penetrou nas profundezas do oceano e ele via maravilhado a fauna marinha movimentando-se e as cadeias de corais que se perdiam na imensidão azul.
– Veja! Falou a voz,
– Esta área foi usada para experiências atômicas, mas já se recuperou. Agora você vai ver o outro lado. A nave manobrou ganhando a orla e então começaram a aparecer entulhos de toda ordem, turvando a paisagem marinha e ao emergir, as praias repleta de lixo. Mais adiante a negra fumaça das fábricas, as áreas degradadas, as queimadas devorando florestas, o desmatamento impiedoso, os garimpos que matam as vertentes e extinguem rios. O assoreamento de rios que antes eram calmos e límpidos e hoje ostentam águas turvas onde milhares de peixes mortos jazem boiando ao sabor de um líquido marrom esverdeado.
– Você foi escolhido, porque você se importa. Você não aceita o que estão fazendo com seu planeta. Isto o perturba. Mas, ainda dá tempo. Lute! Grite! Faça-se ouvir. Estude! Vou deixar um presente para você. Aí no painel há um botão azul. Aperte.
Rafinha obedeceu. Então um pequeno disco, parecendo uma tampa de panela cinza saiu mostrando um botão vermelho ao centro.
– Guarde isto com você! Não mostre a ninguém. Quando você for adulto mostre como era lindo o que ainda pode ser visto agora. Hoje a noite no seu quarto aperte o botão vermelho, toda a nossa conversa e tudo o que você viu, está gravado aí.
A nave voltou ao jardim e Rafinha desceu. Trazia o disquinho apertado junto ao peito. Tudo começou a voltar ao normal, a nave voltava a ser do tamanho de um brinquedo e com um estrondo sumiu na imensidão do espaço tão depressa que nem deu para ver em que direção ia.
Rafael naquela noite assistiu toda a gravação. Era uma projeção tridimensional, como se ele ainda estivesse dentro da nave. Pelas janelas laterais via tudo como se ainda estivesse voando. Deixou sobre o criado mudo e pegou no sono ainda saboreando a estranha viagem que fizera.
Seu pai, como sempre fazia veio a seu quarto para um beijo de boa noite mesmo que ele estivesse dormindo. Percebeu o objeto em cima do criado mudo e o apanhou. Sua esposa ainda estava na cozinha limpando a louça.
– Você já viu isso? Perguntou mostrando a Clara o estranho disco.
– Não vi não! Respondeu ela. Deve ser coisa do Rafinha. Anda sempre colhendo bugigangas por aí. Então Jorge apertou o botão vermelho e os dois ficaram maravilhados com o que viram.
– Clara! Isto é impressionante, deve ser uma tecnologia nova. De onde este menino tirou isto?
– Não sei respondeu Clara, pergunte a ele.
– Isto deve valer uma fortuna. Nunca ouvi falar de nada assim e olhe que eu trabalho com equipamentos de última geração. Sabe o que vou fazer? Vou agora para Canoas, vou mostrar ao Júlio na base aérea. O exército ou a aeronáutica pagarão uma fortuna por isso.
– Você não acha melhor falar com o menino?
– Ta brincando! Já imaginou a grana e o que podemos fazer? Ficaremos ricos.
– E o que eu digo pra ele?
– Sei lá, diga que não viu nada.
Dizendo isso Jorge pegou as chaves do carro, tomou uma lancha para voltar a casa da praia e ganhou a estrada. Ia já quase chegando a freeway, quando sentiu um forte farol refletido no retrovisor, perdeu o controle do carro e invadiu a pista esquerda batendo de frente em uma carreta que trafegava em sentido oposto. Um estrondo seco e agora Jorge era mais um na louca estatística do trânsito. O sonho acabava entre ferros retorcidos.
Clara recebeu a noticia e uma onda de horror tomou conta de todo o seu ser. Como dizer ao menino? Como contar-lhe que a ambição de seu pai acabara naquela tragédia? Ficou muito tempo chorando a morte de Jorge e buscava uma luz que lhe desse forças para encarar o filho. Como dizer que seu pai roubara o objeto? Fumou quase um maço de cigarros antes de criar coragem. Finalmente suspirou forte e animou-se. Precisava dar a notícia ao filho. Subiu vagarosamente as escadas que levavam ao quarto de Rafael. Abriu a porta e sentou-se ao lado do filho. Ele dormia tranqüilo e seu semblante era de quem estava feliz. Mas ela era mãe e agora tinha que criar coragem. Era hora de encarar a responsabilidade. Então seu olhos pousaram sobre o criado mudo e ela quase desmaiou com o que viu. O estranho disquinho estava ali. No lugar em que Rafinha havia colocado. Apesar da tragédia, sentiu-se aliviada. Seria duro dizer ao garoto que seu pai havia morrido, mas agora não precisaria dizer que ele também havia roubado o disquinho. Não contaria que ela e o marido haviam visto as imagens. Fosse qual fosse a origem do conteúdo daquele estranho objeto. Rafinha era tudo o que lhe restava.