Ruce - A história do meu viralata.

Acho que todos nós em alguma época de nossa infância ou juventude tivemos um cãozinho vira-latas. Também tive os meus, mas um deles foi muito especial. Era diferente.

Esta história começou em um final de tarde quando eu e Martinha voltávamos de uma matinê de domingo.

Ao aproximar-nos da casa de meus pais ouvimos um grunhido característico de um cão sentido dor. Já estava quase anoitecendo e fazia frio.

– Será que ele tem frio? Perguntou Martinha enquanto eu me empenhava em localizá-lo em meio aos arbustos à beira da rua ainda gramada onde só havia um caminho aberto na grama. Era um cãozinho ainda novo, mas estava muito ferido. Faltava um bom pedaço de pelo do lado esquerdo. Estava em carne viva. Provavelmente fora atacado por um cão maior e tinha sorte de ainda estar vivo.

– O que vamos fazer?

– Vamos levá-lo, minha mãe saberá o que fazer. Tirei a jaqueta e Martinha me ajudou a acomodá-lo confortavelmente. Eu o conduzi com cuidado para que não piorasse o ferimento.

Minha mãe era uma espécie de veterinária e enfermeira caseira, porque vivia tratando animais e pessoas que não tinham condições de dispor de cuidados médicos. Ela aplicou-lhe um banho de água oxigenada para limpar a ferida e depois jogou Anaceptil em pó e mais uma mistura de enxofre com gordura animal e algumas ervas que mantinha em conserva. Aplicou-lhe um sedativo e o acomodamos sobre uns panos em uma caixa. Em poucos dias estava recuperado.

Na hora de escolhermos um nome, meu pai exigiu.

– Vai se chamar Ruce!

– Porque Ruce? Perguntei.

– Hora, porque eu gosto, acho que é o nome de um cão de um livro que li. Bem, ninguém se atreveria a contestá-lo, então seria Ruce e pronto. Mas Ruce logo demonstrou duas habilidades e um defeito. Meu pai havia comprado uma coleira e uma corrente para prendê-lo. Prende-lo? Nem pensar. Ele não ficava 10 minutos prezo. Possuía a cabeça menor que o diâmetro do pescoço? Não sei. Meu pai chegou a comprar depois uma coleira destas que envolvem o tórax, mas não adiantou.

Nós criávamos galinhas e ao colocar a ração, minha mãe esqueceu a porta do galinheiro aberta e uma galinha saiu para o pátio. Ele simplesmente correu atrás, abocanhando-a pelo pescoço e esperou pacientemente que minha mãe apanhasse a penosa fujona. Estava revelada outra das habilidades. Minha mãe dava-lhe uma dose extra de mamão picado com açúcar. Ele adorava a guloseima e ficava desesperado quando sentia o cheiro. Minha mãe adorou porque agora para pegar uma galinha ela o levava para o galinheiro e apenas apontava.

– Aquela Ruce! Ele fazia pra ela o serviço complicado que era apanhar uma galinha. Certa vez, ela lavava roupa e colocara meu irmão menor em uma cesta de vime próxima ao tanque. Então ele deu um salto sobre ele e caiu do outro lado aos tapas com uma cobra cruzeira que ameaçava o menino. Minha mãe ajudou-o a matar a cobra. Naquela região eram comuns cobras Cruzeiras ou Corais que volta e meia surgiam no pátio.

Em outra ocasião minha mãe saiu e atrasou-se, então tive que providenciar o que comer. Confesso que não sabia como fritar um ovo. Mas resolvi fazer um macarrão. Coloquei massa numa panela, temperei ou pensai que havia temperado. Joguei água em cima e pus para ferver. Obviamente não deu para comer. O Ruce só observava e lambia os beiços. Servi um pouco em sua tigela. Ele cheirou, levantou os olhos e saiu, como quem dissesse,

– Acha que eu vou comer isso?

Fiquei encabulado e aprendi na marra a fazer um macarrão. Fomos almoçar, eu e Ruce, já passava das 16 h.

Mas nem tudo é perfeito e descobrimos logo que ele tinha uma mania. Numa localidade tranqüila, portões estavam sempre abertos e tinha quase tantos cães quanto habitantes do bairro. Sempre que alguém saia de casa ele acompanhava. A gente fazia com que voltasse, mas ele escondia-se e seguia-nos de longe. Quando nos dávamos conta, ele estava aos nossos pés. A pior, era a mania que tinha de provocar outros cães e correr para junto da gente. Eu levava na brincadeira, mas meu pai odiava ter uma briga de cães entre as pernas.

Um dia eu voltava da escola e para chegar em casa tinha que atravessar o quadro ferroviário, contornando vagões. Meu pai era ferroviário. Então ouvi os latidos inconfundíveis pelo menos para mim. Encontrei-o preso em um desses vagões para transporte de gado. Obra de meu pai seguramente. A porta estava destrancada, mas eu não consegui movê-la, era muito pesada. Um ferroviário aproximou-se me ajudou.

– Ok! Mas não fala nada pro teu pai, combinado?

– Claro!

Um belo dia Ruce sumiu. Ninguém sabia de nada, ninguém viu nada. Martinha ficou desolada, ela adorava o cão. Eu de imediato desconfiei de meu pai. Pus a velha contra a parede e mãe é mãe. Ela não tinha segredos para mim e caguetou.

– Teu pai o colocou em um saco de aniagem e levou para a locomotiva. Disse que largaria bem longe.

Martinha chorou quando soube, mas ela adorava meus pais e conformou-se. Passaram-se dois meses e justo no dia do meu aniversário, minha mãe abriu a porta da cozinha para dar de comer aos animais. Ele saltou sobre ela quase a derrubando, depois correu para o meu quarto e acordei sendo lambido pela cara toda. Ele corria para um e para outro acordando todo mundo. Meu pai levantou e depois de ser também saudado a lambidas, ficou pensativo e acho que enxugou uma lágrima furtiva.

– Ok! Agora você ganhou o direito à liberdade. Então ele nos contou que o largara quase 200 km longe, entre Rio Pardo e Porto Alegre. Mas ele fora tratado por alguém. Estava gordo e roliço. Devem tê-lo mantido em algum lugar fechado. Ou levou todo este tempo para encontrar o caminho de casa. Com efeito, meu pai reclamava das manias, mas não voltou a pensar em livrar-se dele. Cerca de um ano depois, eu e Martinha íamos chegando em casa e ouvimos grunhidos desesperados. Ele tentava entrar para baixo da casa enfiando o focinho em um respiradouro do porão. Eu o puxei com dificuldade. Meu pai contornava a cozinha trazendo o revolver na mão.

– O que aconteceu? Perguntou Martinha aflita.

– Veneno! Deram-lhe veneno! Respondeu meu pai.

– Puxa! Não dá pra fazer alguma coisa? Pelo amor de deus! Exclamou ela.

– Não! Não adianta mais. Agora vamos só abreviar seu sofrimento.

A mão trêmula de meu pai apontou a arma. Então presenciamos uma cena que marcou a todos nós. Ele virou-se, olhou meu pai e parecendo ter um momento de trégua, baixou a cabeça espichando o focinho junto ao chão. O estampido ecoou em meus ouvidos e por um longo tempo eu tive sobressaltos na hora de dormir. Pela primeira vez eu vi lágrimas nos olhos de meu pai. Era como se tivéssemos perdido um membro da família. Aquele vira-lata havia conquistado a todos nós.

Cavei uma sepultura junto às bananeiras que tínhamos ao fundo do pátio. Nós o enterramos ali e durante o tempo em que durou meu romance com Martinha, ela sempre trazia uma flor e colocava junto à tosca cruzinha de varas que eu Havia feito. Muitos anos depois eu fui até a casa que agora fechada, com o pátio coberto pelo matagal estava com o portão aberto. Fui até a sepultura, somente o local podia ainda ser encontrado. Apanhei uma flor, uma rosa de uma roseira que minha mãe cuidara com tanto carinho. Nem sei se a mantiveram ou talvez tenham replantado. Lembrei de Martinha. Coloquei a rosa sobre o chão. Não sei que valor possa ter uma rosa para um cão! Mas quem sabe ele não estava por ali tentando saltar e me lamber?

Lauro Winck
Enviado por Lauro Winck em 01/05/2010
Reeditado em 02/05/2010
Código do texto: T2231029
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