"O CAIXÃO DA CARIDADE" Conto de: Flávio Cavalcante
O CAIXÃO DA CARIDADE
Conto de:
Flávio Cavalcante
O nordeste já carrega por si só a fama de ser o berço de talentos e culturas variadas e aprazíveis. A cortesia do povo nordestino ao receber um visitante é de um cuidado tão precioso que causa saudades naquele já teve a experiência desse berço abrasador e aconchegante.
Até em enterro se cultura. É difícil de acreditar hoje em dia, que antigamente no sertão do Nordeste brasileiro, os cadáveres de baixa renda, eram enterrados em redes; pois era uma realidade nua e crua na vida do nordestino. Eu mesmo nas minhas viagens pelo Nordeste, para pesquisar o vocabulário nordestino e a personalidade de cada personagem do trabalho em pauta, cheguei em Canastra, Lugarejo pertencente a Ibateguara em Alagoas, num sítio conhecido como Tacho, tive a oportunidade de ver um enterro em rede pela primeira vez em minha vida; o que mais me chamou a tenção foi que eles levaram o corpo, jogaram dentro de um buraco e voltaram com a rede para casa.
Na cidade de São José da Laje, até pelo fato da modernidade, não existe mais a rede; mas o ritual não e diferente; não usando rede e sim, o caixão da caridade, que fica dentro de uma capela localizada no meio do cemitério público da cidade.
Muitos anos antes da catástrofe de 1969, existiu um homem na cidade que podemos considerar um marco; porque é unânime em entrevistas com os antigos que o conheceu; apesar de sua simplicidade, seus trajes sujos e maltrapilhos; muitas vezes passava uma má impressão para quem não o conhecesse; o seu nome era Abdias. Apesar de externamente se apresentar de uma forma horrenda, tinha no seu interior, uma alma iluminada no intuito de ajudar o mais necessitado. Era conhecido na cidade por ser uma pessoa caridosa; exercendo o seu papel de carregador de defuntos em caixão da caridade.
Abdias era sempre solicitado pelos moradores de baixa renda da cidade. Ele colocava o defunto dentro do caixão botava na cabeça e saía pelas ruas de São José da Laje, com aquele peso na cabeça; tipo de trabalho que não é fácil, principalmente na cidade de São José da Laje, que o cemitério fica localizado no final de uma ladeira de difícil acesso, um tormento para subir de mãos limpas, imagine com um defunto na cabeça; mas o Abdias fazia aquela caridade, sem nem fazer cara feia.
Contam algumas pessoas anosas que o conheceram, que certa vez, Abdias fora levar um defunto no dito caixão da caridade no cemitério da cidade; e no final da ladeira, Abdias tropeçou numa pedra, bambeou para não derrubar o caixão, mas foi inevitável. O defunto estremeceu como quem tava dando uma bronca, mas não teve jeito; o caixão da caridade desabou da cabeça de Abdias, caiu no asfalto, abriu a tampa e o defunto saiu embolando de ladeira a baixo, mais enfeitado que santa cruz de beira de estrada, ditado popular do lugar. A mortalha que envolvia o cadáver chamava a atenção de longe; feita de um tecido que brilhava muito. As mãos e os pés do defunto estavam brancos, que chegavam a ser transparentes; muitos curiosos ao invés de ajudá-lo a colocar o defunto no caixão novamente, ficaram fazendo algazarras; dizendo que o defunto não queria ir para o cemitério.
O tumulto foi grande, mas finalmente, viram o desespero de Abdias e o ajudaram a colocar o defunto no caixão, depois, continuou a sua lida; chegou no buraco, jogou-o e devolveu o caixão para a capela do cemitério, voltava pra casa e ficava na espera do próximo.
- FIM -