O PENHASCO
O homem velho seguia rumo ao penhasco.
Caminhava com dificuldade, maldizendo os anos que roubaram suas forças e destruiram tudo o que havia construído, derrubando sonhos como castelos de cartas que teimavam em se reerguer de tempos em tempos.
Caminhava desde o início de sua vida. Não havia nascido em um cemitério, mas com o decorrer dos tempos, amaldiçoado por sua saúde, viu todos que amava enterrados nas covas ao seu redor; todos os nomes que havia aprendido a pronunciar com afeição transcritos em lápides em meio ao terreno seco que não podia mais nutrir. Há tempos estava exaurido; viu as rosas murcharesm, as árvores que faziam sombra sobre a estrada secarem sem poder salvá-las, sem poder derramar uma única lágrima.
Durante toda a sua vida havia perseguido grandes idéias que, por serem grandes demais, foi incapaz de agarrá-las e contê-las por maior tempo. Agora tudo que lhe restava era o penhasco.
O homem velho e o penhasco sempre se buscaram mutuamente e já eram íntimos antes mesmo de se encontrarem. Agora o momento estava próximo; já podiam se contemplar de onde estavam.
E o homem se colocou de pé sobre o penhasco; o rosto arranhado, as roupas gastas e rasgadas e os pés a sangrarem.
Houve o tempo em que caminhava em meio a rosas, sentindo o perfume e as cores, sorrindo pela ignorância da dor. Era jovem. Porém com o tempo, o preço a ser pago foi cobrado, como não poderia deixar de ser; começou a sentir os espinhos que primeiro lhe arranhavam a face, como unhas mal aparadas do destino.
O tempo como um estilete tornou os espinhos cortantes que doiam e multilavam; ma ainda restavam as cores que distraiam os olhos e o perfume que como gás anestésico, certas vezes vencia a dor.
Mais tarde, porém, as rosas murcharam, caíram; o odor ainda pairou no ar por algum tempo, trazendo a lembrança de quando existiam flores. Mas veio o vento e se foi o perfume. O homem amaldiçoou o vento. As suas roupas estavam desbotadas, meio rasgadas, os espinhos feriam e deixavam marcas, mas ele ainda podia caminhar.
Mas os galhos caíram, os espinhos se depositaram sobre o chão e o homem, já maduro, teve que caminhar sobre eles, com os pés descalços, sangrando, mas caminhando. O vermelho do sangue lembrou as rosas, que lembraram o perfume, que lembrou o vento ingrato, que não parou de soprar e carregou seus fios de cabelo pelo ar. O homem se tornou velho.
Então o homem velho com seus cabelos ralos e grisalhos, com as roupas gastas, com o pé a sangrar se colocou sobre o penhasco. olhou para baixo. O cemitério estava lá. Enxergou suas velhas lembranças chamando por ele ao lado de uma cova aberta e de rosas que cresciam por todas as partes.
O homem velho sorriu e pulou. Agora sabia que o vento lhe conduziria e que as flores e as lembranças o acolheriam em meio a elas. O homem, enfim, entendeu o penhasco e a caminhada; compreendeu que seu sangue nutria novas rosas no caminho que outros percorrerão e que o vento que levou o perfume e seus cabelos durante todo o tempo acariciou sua face.
O homem enfim entendeu a vida ao aceitar a morte e então, não era mais homem, era lembrança.
P. R. O. 09/01/2001