DE LUIZ EM LUIZ

Enquanto estava sentada ali naquela varanda frente ao mar, durante aqueles dias de começo de ano, por mais que tentasse não conseguia ficar indiferente. Ele chamava para si a atenção de todos. E no esforço de acompanhar a sua movimentação constante e irrequieta de quem não sabe ficar parado, que não sossega a mente nem quando parece dormir, ficava imaginando, tentando penetrar nessa cabeça que mesmo parecendo alheada, ferve de curiosidade de saber das coisas no tempo instante em que estão acontecendo.

Mas a sua controvertida personalidade se mostra na medida em que da mesma forma que ele parece estar sempre plugado com o que acontece la fora, possui um mundo próprio e particular, para onde acorre quando, aborrecido com a pequenez de tudo a sua volta, some para nele se refugiar, se aquieta parecendo inane como uma larva em seu casulo de onde, à mais leve provocação, parte como foguete para o ataque muitas vezes mortal quando feito bomba de puro (hidro)gênio explode em uma enxurrada de palavras ferinas e cortantes como vidro que, ao se partir em milhões de pedaços, desintegra as coisas que estão ao seu redor aquecendo a temperatura ambiente ao máximo de calor como uma fusão nuclear produzindo a energia que faz as estrelas brilharem.

A impressão que me da é que ele não é um, são muitos. Um só não da conta. Onipresente está em tudo que acontece numa distância que a sua perna sabe sempre alcançar na velocidade do raio que na ficção foi alcançada pelo não menos famoso e ágil The Flash.

Anoitece, está na balada. Amanhece, zanza pela praia a descobrir o que a escuridão complacente da noite escondeu e a claridade do sol inclemente está a revelar e ele quer saber. Por isso de manhã eu olhava la estava ele. Serelepe. Fuçando, farejando rastros de coisas. A impressão que eu tinha então era que ele não dormira na noite anterior. Aliás, o que deixa transparecer é que nunca dorme. Talvez finja dormir, por vezes até ronque só para enganar, irritar quem estiver por perto, mas dormir mesmo, com os dois olhos fechados, corpo relaxado, desguarnecido, alheio a tudo que possa acontecer...ah! Isso eu não acredito que faça. .Talvez com um olho fechado e o outro parecendo dormir, mas sempre pronto pra registrar qualquer ocorrência que renda algumas boas fofocas no dia seguinte!

Quando parece estar enfurnado no quarto remexendo nas coisas ao redor, ele surpreende voltando de algum lugar, de um canto qualquer resguardado do olhar indiscreto de todos, mas que para ele se desvenda aos seus sentidos aguçados de lince, que se atiçam a qualquer sinal de alvoroço. Aí ele sorrateiro sai de cena para retornar cheio de histórias ricas de detalhes, que ele trata de apimentar com a sua fértil e maliciosa imaginação.

E sempre volta trazendo consigo rastos e sinais dessas outras cenas vividas nos bastidores, que exibe como troféus, mudos testemunhos das suas incursões solitárias em lugares nunca dantes navegados.

Algum objeto que resgatou dos escombros de uma demolição ou do rescaldo de algum incêndio que provocou sabe-se la onde e que, com um bom trato, não farão feio em qualquer ambiente.

Fotos de pessoas interessantes e exóticas que ele mesmo tirou com sua câmera maravilhosa que passou da hora e não serve mais e agora jaz num canto qualquer do quarto, como algo que perdeu a vez, já fez a sua hora (honra e glória), cumpriu a sua missão e segue seu destino incerto. Até que, como uma onda, volte à crista e seja de novo entronizada como a bola da vez.

Olhe o que ele fez!. Ferida de morte a câmera de milhões de dólares que ainda lhe custa os olhos da cara todo mês, nas prestações escrachantes ainda não pagas, já não empolga o menino que curioso e ávido de novas conquistas rejeita a enferma num leito de morte e vira-se para seu novo brinquedo. Um novo enredo.

E a culpa é sempre de alguém a quem foi confiada a guarda e não zelou. Deixou cair. Descuidou. Quebrou. Inutilizou seu brinquedinho. Padrastos. São como ratos. Não quero mais saber. Diz injuriado.

Às vezes aparece com lindas e raras peças esculpidas. Cupidos atirando flechas. Santos milagreiros do Juazeiro verdadeiras obras de arte. Presentes de um artesão com quem fez amizade no bar da esquina onde bebia cachaça com limão ao som de Valdick Soriano cantando “eu não sou cachorro não”. Pode? Coisas de Luiz! Todo mundo diz.

Quando não, alguma peça de roupa que garimpou em meio ao cascalho de coisas sem valor jogadas em um brechó do centro, na esquina da praça, quase de graça! Uma pechincha. Palavra de quem entende. Nem tive dúvidas, bastou por os olhos em cima... Imagina se eu ia perder! Deixar pra trás uma jóia dessas no meio de tanta quinquilharia. Quem diria! Ela pedia para ser resgatada. Mesmo sem dinheiro, pois a mixaria que eu tinha colocado no bolso de trás da calça para uma necessidade, quando tarde da noite já meio melado quisesse tomar um caldo de peixe (por favor, me deixe!) perdi quando puxei um papel que tinha guardado com o telefone do moto-taxista que eu chamei pra me levar até a casa de um amigo pois estava chovendo e eu tinha esquecido de levar o guarda-chuva aquele que eu ganhei de uma amiga em Paris o ano passado quando fomos passear na Praça da Concórdia essa minha amiga que por sinal tem um namorado que gosta de tomar xerez e onde eu fiquei até o fim do mês eu não sei o que ele fez só sei que quando eu procurei o dinheiro não achei nenhum real fiquei muito mal pois não ia poder pagar a conta da corrida, (que eu faço da vida), ainda assim comprei.

Ufa! Cansei!.

Esse lenço de seda, você nem imagina, tava largado, como algo sem valor. Da para tirar a maior onda assim jogado no pescoço, meio por acaso, não fica um arraso Beth? Ei Beth to falando com você ingrata, vê se se resolve e sai dessa pois você nem ata e nem desata. Que chata!

O chapéu em que ninguém reparava, não ficou massa? Chocante não é mulher? Dão um toque especial ao meu estilo e fazem a diferença. Não tem uma presença?

Tantas coisas acontecendo, pessoas interessantes que ele vive a encontrar pelos cantos, recantos dessa cidade que parece dominar tão bem, transitando entre tantos mundos, de reis a vagabundos, Vicentes, Raimundos...Vitórias, histórias que vivencia de formas diferentes, mas sempre contadas com tantos detalhes que da assunto pra mais de um mês.

Entrou pela perna do pato, saiu pela perna do pinto, o rei mandou dizer, que quem quiser que conte cinco. Um, dois, três, quatro, cinco, seis. Galinha Pedrês.

Contos quase de fada que ele passa a relatar num rame rame surreal, tão rico em detalhes que faz parecer uma eternidade como se fizessem parte das mil e umas noites.

O tom monocórdio com que conta histórias num cenário delirante, ainda sob o efeito e a impressão do que viu, observou, viveu, quando enfurecido se transforma numa tonitruante pedrada mental fustigando por horas a fio (parecendo um desafio!) os ouvidos e as mentes de quem se encontra dentro do seu raio de alcance e que, não por acaso foi eleito para ser o alvo dessa saraivada. Ai meu Deus me salva!

E ele entra de tal forma no que está relatando que fica alheio e imune a tudo e nem consegue notar o desconforto, a impaciência de quem está sendo bombardeado pela sua verve delirante.

Na ânsia de nunca ficar de fora de nada que acontece, muitas vezes chega a usar de artifícios para estar em lugares para onde não foi diretamente convidado. De penetra, nunca se deixa pegar. Sempre tem um argumento salvador ou um gesto que legitima a sua presença. Um uísque, uma garrafa de vinho pode ser o passaporte para a calçada da fama. Ele então se inflama logo se sente em casa e, como posseiro, se instala e passa a dar palpite de mestre em tudo que vê, a promover mudanças na disposição das coisas buscando uma combinação de fatores que leve a um efeito positivo sobre a vida e o humor das pessoas. E o faz com tanta desenvoltura e naturalidade que da a impressão que foi contratado pelo dono da casa. Leva isso daqui. Não vê que não combina com nada, ta horrível, destoante. Deixa entrar a luz. Troca essa mesa de lugar... Vira para o outro lado. Esse jarro não tem nada a ver com esse ambiente. Não invente! É preciso agrupar coisas que têm a mesma energia! Olha a sinergia! Magia? Nada, ciência milenar. Não, tudo menos me chamar de decorador de interiores. Que horror! Sou um adepto da pura filosofia chinesa, baseada na observação da natureza. Com o feng shui você vai ter mais harmonia, sorte e fortuna na sua vida, pode crer amigo! Eu lhe digo.

Em um balcão de bar tomando um drink no point da hora num bar transado da Aldeota ou no Passeio Público entre amigos e colegas num sábado pela manhã uma feijoada comemorativa acredita que pode render longas e surpreendentes aventuras! Nunca se sabe. Por isso é bom estar sempre preparado para tudo que possa acontecer.

Passional odeia com a mesma facilidade com que ama. Cobre de elogios para depois mostrar os defeitos sem dó nem piedade.

Juras de amizade eterna podem ser imediatamente substituídas por injúrias quando pressente alguma atitude que não condiz com o que esperava.

Amante daquela idéia de que a verdade deve ser dita em qualquer situação, mesmo quando não se deseja, ele a usa como um dardo muitas vezes mortal que costuma lançar na cara das pessoas quando bem lhe apraz. Na paz!.

Faz e desfaz com a maior cara de pau. Quem hoje tem todo o seu amor, amanhã pode só merecer desprezo e indiferença.

Mas essa mesma volubilidade age no sentido oposto e o faz estar sempre em constante mutação de seus conceitos e opiniões sobre pessoas e coisas.

Num instante seguinte em que soltou impropérios contra o melhor amigo que o está desagradando pode voltar a cobri-lo de beijos.

Bem ao estilo de um palaciano das cortes francesas vive a arquitetar tramas maquiavélicas para que rolem cabeças. Sussurros ao pé do ouvido. Corredores mal iluminados. Recantos discretos são apropriados e apreciados por quem tece no silêncio e na escuridão.

Mas o seu lado estrela quer brilhar nas passarelas da vida e a fama e os aplausos o excitam e até o incitam a fazer da vida um jogo onde quem dá as cartas nem sempre é quem está por cima. Sente o clima.

Anima-se a cada nova descoberta de possibilidades. Veleidades! E viaja nas idéias de projetos milionários ainda em gestação. Projeta o mundo em sua imaginação como se da prancheta mental pudesse sair algo acabado, pronto para ser usado. Na pressa de viver tudo, atabalhoadamente passa do zero a cem num átimo de segundo, da mesma forma desacelera para no segundo seguinte estar a vinte e logo depois voltar ao ponto zero de onde partiu. Parece um Etna em erupção. Um tufão. Um trem-bala em ação. E nem se abala!.

Fala, fala pelos cotovelos. Como um novelo desenrolando a lã atropela quem ousa quebrar a sua monocórdia narração. Como um sussurro gutural fala para alimentar sua egocêntrica personalidade sem se importar com o efeito que isso possa estar causando em quem estiver sendo alvo dessa saraivada de palavras com que narra a sua saga vivida ainda a pouco no trajeto que fez de casa até aqui. Sai de mim abacaxi.

No taxi que teve de pegar, se queixa, porque ninguém lhe deu a deixa. Perdi o show la na praça, de graça. Também a amiga pão duro se recusou a lhe dar carona (é muito furona!) e, pra completar, ele esqueceu a carteira em casa e vai ter que perder tempo numa fila imensa. Não compensa. Melhor fazer um trato com o motobói despachante pra ir em seu lugar, pensa ele em voz alta. Pensando bem assim vou lucrar mais, pois enquanto ele vai lá, eu entro na galeria de arte de um amigo meu que fica no prédio ao lado e vejo a exposição de fotos que ele está promovendo enfocando os homens que passam na calçada da igreja, não param, não rezam, nem olham e seguem em frente. São ateus descrentes!

Demente, aposto que você não fez nada pra entrar nesse concurso! Eu bem que lhe disse, mas você só quer ficar aí parada, deitada nessa sua inércia! Confessa, você quer mesmo é ficar no bem bom do seu anonimato, que saco mulher, te mato!

Você nem sabe o que aconteceu...acho que vou ter que ir a Manaus pegar com a Belle o meu chapéu que comprei em Madrid, que ela levou no ano passado emprestado, não foi dado. E ela nem me devolveu. O gato comeu!

Como numa corda bamba, ele transita no limite entre aceitar a realidade mais aprisionante e alternar com outras formas que transcendem a linha tênue que separa os dois mundos, quando lhe convém. Não vem que não tem meu bem.

Irrequieto, entra, sai, vai la fora, pergunta a hora. Volta. Senta. Levanta. Toma mais uma caipirosca. Pode ser um vinho tinto. Uma vodca quem sabe. Tudo cabe pra ficar legal. Saca do celular...tecla alguns números...Que saco! Caixa postal de novo. Foi mal. É fogo!

Fica visivelmente impaciente. Parece dizer que ta na hora de saltar. Ir em busca de coisas novas...novos agitos! Fazer uma blitz noturna. Quer se dar bem. Mesmo sem vintém.

Num sábado à noite é um crime ficar em casa sem fazer nada... Com tanta coisa boa acontecendo la fora.

Isso aqui já deu o que tinha de dar. Ta chato! Vou embora. Vou descolar um babado. Algo mais agitado. Mais descolado. Mais cultural...um lual...um show ... quem sabe. Irado!

Prevendo o que pode acontecer, vai no toalete...descola um perfume que borrifa sem piedade por todo o corpo e pela casa. Como num ritual. Mais coisas do feng shui. Pensa que isso não influi? Influi e muito!

Me da uma carona aí? Como é não dá?! Ah ta... Obrigado. Deixa estar amiga, quem tem com que me pagar não me deve nada. Já ouviu falar?. Você vai ver. Essa foi por um triz!

Táxiiiiiiiiiiiiiiiiii

Fui...para mais um Luiz!

N.A. Vocês podem não conhecer esse meu Luiz e seus desdobramentos, mas com certeza já identificaram alguém no seu círculo familiar ou de amigos que se assemelha a ele. Um Luiz assim que, às vezes perturba, mas faz uma falta imensa quando não está por perto.

Nas reuniões e festas de amigos ele é fundamental para agitar as noites e espantar o tédio e a mesmice que costumam tomar conta desse tipo de evento.

Alena Ajira
Enviado por Alena Ajira em 29/04/2010
Reeditado em 24/06/2015
Código do texto: T2226496
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