A CAÇADORA DE MORCEGOS
Quem visse aquela jovem, toda arrumadinha em sua farda de normalista, descendo a escadaria do casarão antigo, em direção ao colégio, pensaria que ela estava fadada a ser mais uma feliz e dedicada professorinha, a ensinar o B-A = BÁ a um bando de lindas e barulhentas crianças' de uma escolinha municipal, numa pequena cidade do interior do nordeste.
No entanto, se pudessem penetrar naquela mente, que se escondia dentro daquela loira cabecinha, veriam que não era isso que ela queria para a sua vida.
Ela queria mais. Ela pretendia alçar vôos mais altos. Ela não queria ser uma gaivota como todas do seu bando. Ela queria ser um Fernão Capelo. Exceder seus limites. Buscar novos horizontes.
Mas antes de sair pelo mundo em busca de outra dimensão e lutar para vencer os preconceitos e as dificuldades inerentes às suas condições sócioeconômica, geopolítica e sexual, ela teve que se encher de coragem para vencer os seus medos e derrotar um pequeno e energúmeno ser. Um inesperado e audacioso visitante noturno que teve a audácia de invadir seu sono sem pedir licença, logo na primeira noite na casa que seria, por algum tempo, o seu novo lar. Mais um de tantos que teve que adotar provisoriamente em sua vida.
E foi nesse casarão colonial, casa de uma tia da sua mãe, que morava com a filha e o genro, onde a nossa normalista, alem de ter que conviver com os constantes e terríveis conflitos protagonizados diariamente pelo trio, ainda teve que se envolver em uma estranha e estranha e inesperada caçada noturna.
Ainda abalada pelo impacto da separação da família e apreensiva quanto à sua nova situação de vida e moradia, não via a hora de cair exausta na rede e poder dormir uma noite de sono tranqüila para se refazer e encarar a volta ás aulas no dia seguinte.
Mas, no meio da noite, surpresa ela foi acordada pelo impacto frio de um objeto não identificado que acabara de cair dentro da rede onde dormia o sono dos justos. Justo na hora em que sonhava com a família que acabara de deixar.
No susto ela pulou abruptamente da rede e, ainda ofuscada pela luz que, agilmente, acendera no quarto, deparou-se com aquele ser estranho, meio rato meio pássaro, de pele escura, logo identificado como um morcego, alojado no fundo da rede agora vazia, onde até bem pouco ela dormia um sono de uma noite que pensara pudesse ser tranqüila e calma.
Ela então me disse que ao se deparar com o morcego ali quietinho e também assustado teve a certeza que ele estava a olhar fixamente para ela, como se a encarasse com um olhar desafiador, estudando o inimigo. Essa sensação persistiu mesmo sabendo, como uma leitora voraz e uma mente inteligente e ávida por saber que é, que morcego não enxerga e se move guiado pelo eco dos sons que emite constantemente e que volta para ele orientando-o nos seus deslocamentos como o sonar faz com o submarino.
Tratando de vencer o medo que estava sentindo daquela energúmena criatura, protagonista de tantas histórias e lendas que povoam o imaginário das crianças e que compõem o folclore de todas as regiões desse país, e que ameaçava paralisá-la, ela tratou de tomar logo uma atitude antes que ele se refizesse primeiro e a atacasse novamente.
Foi assim que, saindo da surpresa e do torpor em que fora mergulhada ao se deparar com aquele quadro, sacudiu com violência a rede até conseguir derrubar o visitante inoportuno que, atordoado, foi vítima fatal das chineladas que, meio tímidas e amedrontadas no início, ante a falta de reação da vítima, foram ganhando coragem e força e se transformando em fúria desenfreada. Uma terrível vingança contra aquele que tivera a audácia de vir perturbar o seu sono daquela forma tão assustadora.
Ao fim desse primeiro round o corpo inerte do morcego, único testemunho do que acontecera na solidão daquele quarto, jazia no chão esperando o dia amanhecer para ser “rebolado no mato”, o que no linguajar local da época, ano de mil novecentos e sessenta e seis, queria dizer “ser descartado” solenemente em qualquer lugar da rua ou do quintal da casa. Sem nenhuma preocupação com o ecologicamente correto que ainda estava longe de existir por aquelas bandas.
Pensando que com isso encerrava aquele episódio que julgava único, isolado e desagradável da estréia no sobrado, estranha forma que a noite achou para dar as boas vindas a alguém triste e fragilizada pela saudade da família de quem acabara de se separar, ela voltou para o aconchego da rede onde continuou dormindo até o cantar do galo e o cheiro de café no amanhecer fazê-la levantar para o primeiro dia na sua nova casa em uma nova e provisória fase da sua vida.
Qual o que! Doce ilusão. A caça ao morcego foi uma constante nesse período que a nossa professorinha passou na casa da tia. Assim como foram uma constante as desavenças e brigas da família que ela teve que presenciar. Ela me diz que esse período significou mais um estágio no curso “Como passar incólume por uma guerra familiar” (uma família que não é bem a dela) que lhe deu um diploma para a vida toda.
Era um “triunvirato” de brigas. Brigava a mãe com a filha. A filha com o marido. E a sogra com o genro. Era uma guerra de titãs. Se fossem partir para a agressão física com certeza poderia sair dali um campeão de Sumô, tal o peso pesado que eles eram.
E ela chochinha, acanhada, assustada com aquilo que não compreendia muito bem ainda, tratou logo de se adaptar a tudo o mais rápido possível e tentar passar incólume por aquela guerra que não lhe pertencia e que em breve deveria deixar para trás como mais um triste aprendizado. Inevitável, o chamado “mal necessário”, uma vez que não havia outro jeito.
E tirar o melhor proveito possível de tudo que ali passou e em outras ocasiões semelhantes por toda a infância, adolescência e juventude.
Enquanto isso a noite lhe reservava uma batalha particular contra o ataque dos morcegos.
Para não ter que ficar a noite toda de plantão esperando a hora do ataque ela desenvolveu uma técnica muito interessante. Dormia sob as cobertas, mesmo em um calor infernal, com o lençol esticado da cabeça aos pés sobre o corpo de forma que quando o maldito aterrissava batia no lençol esticado que o catapultava pelo quarto e caía, atordoado no chão, dando tempo para ela se levantar, acender a luz e abatê-lo a chineladas. Sem chances de reação de contra-ataque ou de fuga. Principalmente após algumas noites de batalha quando ela foi adquirindo experiência e habilidade e ficou ágil para desenvolver as ações de defesa e ataque. Habilidade e experiência que foram fundamentais para ela vencer essa guerra.
E pela manhã mais um cadáver de morcego estendido no chão do quarto era a única testemunha da batalha que ali fora travada. E ela discretamente atravessava a casa conduzido nas pontas dos dedos, com asco e desprezo, aquele cadáver ressecado que era rebolado no mato no fundo do quintal da casa, como quem se desvencilha de algo abjeto e inoportuno. Assim meio de vingança e de raiva.
Mais uma batalha ganha das cento e vinte e duas travadas nas noites que ela passou naquele sobrado. Cento e vinte e duas batalhas creditadas na conta da amável caçadora de morcegos em que ela se transformara. Cento e vinte e dois extermínios de espécimes representantes da Ordem Chiroptera debitados na conta da futura ambientalista.
Quem vai pagar pelo desequilíbrio ecológico que a atitude dela possa ter causado? Mas também quem deveria pagar pelas noites de sono mal dormidas que eles a fizeram passar?
Portanto, desse episódio, além das lições e experiência de vida que ela pode tirar, resta a certeza de que na contabilidade de perdas e danos morais, pessoais, psíquicos ou ambientais ela está quites com todos.
Se foi exterminadora de morcegos por quase quatro meses o fez em legítima defesa, para garantir a sua saúde física e mental, pois este sempre foi um animal coberto de mistérios para as pessoas do interior e de quem sempre ela teve pavor pelo que escutava os outros falarem, relatarem casos acontecidos com animais como bois, cavalos cujo sangue era sugado até à morte. Na dúvida era melhor não arriscar.
Pela aparência estranha e bizarra seriam ratos voadores? Um representante do mundo das sombras, das bruxas e da magia negra que habitam as cavernas, locas e furnas esconderijos de onde saem à noite em bandos para atacar pomares, animais e pessoas?
No seu pouco conhecimento (não esquecer que a internet nem havia sido inventada ainda) e ingenuidade, impregnada e influenciada pelas lendas que a crendice popular infunde nas mentes juvenis desde a mais tenra idade, para ela morcego e vampiro eram a mesma coisa. Os morcegos seriam aqueles vampiros que vemos nos filmes e lemos nos romances – o corpo de um morto que, segundo tradição lendária, à noite se reanima e sai do túmulo para sugar o sangue dos vivos. E que horror! ele estava bem ali – no seu quarto, dentro da sua rede toda noite.
E então ela lembra de toda aquela parafernália – crucifixo, estacas, alho – de que se utilizam os caçadores de vampiros dos filmes de terror para vencer essa criatura das trevas. E na cabecinha cada vez mais confusa pouco a pouco vai se formando o clima para o estabelecimento do pavor irracional e que paralisa e embota o raciocínio lógico impedindo de ver e de agir.
Mas, pelo que se vê, apesar de tudo isso, ela soube vencer esse medo paralisante por exatas cento e vinte e duas noites que passou no malfadado sobrado. Ela conseguiu evitar um contato maior com os morcegos, vampiros sempre à espreita para dar o golpe certeiro, direto no seu pescoço e transformá-la em uma vampira. Assim transfmutada iria compor o exército de mortos vivos, lendas que habitam o imaginário da juventude, gestado nos contos de fada que as babás e as mães, em seu desvelo, contam aos seus bebês toda noite para que estes venham logo a dormir. Justo a quem dizem amar e, ironicamente, ainda desejam um sono tranqüilo sonhando com os anjos. Só se for os anjos das trevas. Das sombras das grutas e das profundezas da terra.
Que sádicas essas mães e babás!
E ela ali na batalha diuturna, com um vampiro por noite já se sentia uma vitoriosa e amável caçadora de vampiros muito antes do filme ser produzido.
Sem estacas, sem crucifixo e sem alho com a cara a coragem e a necessidade e premência do sono, tendo por arma a máquina de guerra que idealizou para por em prática a estratégia noturna - o lençol esticado catapultando o bicho à distância e um chinelo na mão.
Daquela permanência na casa da tia ela diz ter tirado lições, que levou para toda a vida, de como vencer os medos, como passar incólume por uma saraivada de balas cruzadas e como viver na corda bamba.
Interessante que com todo esse preparo bélico ela seja uma guerreira tão da paz!
A sua guerra particular sempre foi e sempre será contra o preconceito que reputa como o maior mau da humanidade e responsável por tudo que é guerra e desavenças que tanto acontecem no mundo.
E essa guerra a gente vence com respeito às diferenças e à diversidade.
Por isso, ela me diz daquele seu jeito meio tímido mas com muita convicção, é importante que nunca deixemos que pequenas guerras nos façam perder o bom humor e o sono. Dormir, acordar, vencer para voltar a dormir novamente e acordar no dia seguinte com disposição para enfrentar novos desafios.
É essa a batalha final.
Acordar pra vida, espantando os vampiros que querem sugar seu sangue para deixar você sem ânimo, impedindo assim que desfrutemos as delícias da vida e do amor.
Um morcego por dia...Pra quem não tem leão.