A saga de uma garota e um Rolex
Com muito amor no coração e pouco dinheiro na bolsa, aquela garota ingênua e pura saiu certa tarde de outubro, o ano era 1977, em busca do presente ideal, para aquele que ela pensava ser o homem ideal para a sua vida.
O dia 8 se aproximava e ela queria fazer o melhor, dar o melhor de si, no melhor presente do mundo: aquele que é o objeto maior de desejo do presenteado, no caso o aniversariante, seu namorado.
Sem o stress de ter que adivinhar, pesquisar e pensar no que iria agradar o namorado achava que, dessa vez, seria uma tarefa fácil escolher um presente para um homem especial. Não havia erro. Era comprar e agradar em cheio.
Após saltar do ônibus na Praça José de Alencar, enquanto caminhava pela Rua Guilherme Rocha, onde se concentravam as joalherias da cidade à época, anterior à era dos shoppings, já antecipava aquele momento de prazer e satisfação, quando poderia ver a alegria saltando daqueles lindos olhos azuis que ela tanto amava!. E aquela boca sorrindo encabulada sob o bigode que, juntamente com uma barba bem aparada, compunham tão maravilhosamente aquele rosto de artista de cinema de Hollywood, que ela não se cansava de admirar e beijar.
Nos seus devaneios de garota romântica e sonhadora, que pensa e vê o mundo por uma ótica bem particular, as coisas valem pela sua essência e um relógio para ela é apenas um instrumento de marcar as horas, que deve, ser antes de tudo funcional, embora também possa ser bonito e bom. Apenas isso. E nesse seu mundo particular não cabem referências e, muito menos, fidelidade ou adesão ao mundo fútil, frívolo, efêmero e, sobretudo, caro das grifes famosas que ditam a moda e povoam o imaginário das jovens cabecinhas das garotas de pelo menos uma boa parte desse planeta.
Até então, um mundo que ainda não havia se transformado na “Aldeia Global” de Herbert Marshall McLuhan, sociólogo, filósofo e educador canadense, o que somente veio a acontecer a partir do advento e da popularização do celular e da internet quando o conceito começa a se concretizar.
Jamais passaria por essa cabecinha que um determinado objeto ligado a uma marca – uma grife, no caso aqui, um de relógio pudesse representar um grande símbolo de status para quem o possui e faz questão de ostentá-lo no braço com orgulho. Isso numa época em que ainda era possível sair por aí de forma indiscriminada com um Rolex no pulso. Hoje corre-se um sério risco de perdê-lo para o ladrão, na melhor das hipóteses. Muitas vezes perde-se também a vida ou, na melhor das hipóteses, o braço, brutalmente arrancado junto com o relógio na pressa da violência desenfreada em que estamos todos mergulhados nesse mundo globalizado que MacLuan previu!
Mas nesse caso especificamente, ele não podia ser um relógio qualquer, pois o namorado se recusava a colocar outra marca no pulso que não fosse um Rolex.
A cabecinha lunática nunca pensou o que poderia significar essa estranha decisão. Ela se fixou apenas nesse nome Rolex - o objeto de desejo do seu amado. Os motivos eram dele e só ele poderia saber o porquê e ela respeitou, como costuma respeitar as vontades, opiniões e crenças das pessoas em geral. No momento ela estava focada e determinada em satisfazer esse desejo do amado no dia do seu aniversário, por mais cara que fosse a tarefa.
Caminhando pela rua com esses pensamentos na cabeça e uma idéia no coração, foi surpreendida pelo “não” proferido pelo estupefato vendedor de uma pequena e acanhada joalheria da Rua Guilherme Rocha, primeiro de uma série de outros ‘nãos” que ela iria receber ao longo da sua peregrinação em resposta ao que pensava ser uma pergunta simples e de fácil satisfação:
- Moço, aqui tem Rolex?
- Não, não temos moça.
Nem mesmo quando a cena começou a se repetir indefinidamente a garota ligou o desconfiômetro e percebeu que havia alguma coisa errada com a sua procura.
Continuou o seu ritual de loja em loja naquele corredor comercial da cidade especializado em óticas e joalherias.
Em uma das últimas lojas, o vendedor deu uma dica, ela devia procurar na King Jóia que era, naquele tempo, uma das mais luxuosas e caras da cidade.
Após agradecer ela resolveu acatar a sugestão e ir direto à loja indicada.
Já na porta deu para sentir a diferença de estilo. E quando o nome Rolex foi mencionado foi possível então perceber a mudança de tratamento que lhe foi dispensado pela vendedora. Foi assim como se tivesse sido pronunciada uma senha, um “Abra-te Sésamo”. A famosa frase mágica usada para abrir as portas da caverna do tesouro no conto persa que narra as aventuras de Ali Babá e os Quarenta Ladrões, do Livro das Mil e Uma Noites ou (Noites na Arábia), e que faz parte do imaginário de toda uma geração.
Conduziram-na, gentilmente ao interior da loja, onde foi tratada com toda a deferência por uma vendedora tão solícita e empenhada em agradar que fez desconfiar que alguma coisa estivesse errada ali, no velho estilo do sertanejo nordestino, ressabiado das promessas dos políticos em época de eleição: “esmola grande o santo desconfia”. Mas a vendedora vislumbrando ali uma possível e provável gorda comissão em cima daquela tão ansiada venda, com os olhos faiscando de tão entusiasmada, tratou de deixar a freguesa o mais confortável possível o que só fez contribuir para aumentar a estranheza da garota que não estava acostumada com aquilo.
Ela soube então, pela primeira vez na vida, o que é ter um tratamento diferenciado, um tal de tratamento VIP, de Very Important Person.
Sentada, confortavelmente e imediatamente servida de água e cafezinho, como manda a tradição, esperou só uns poucos minutos até que o gerente, em pessoa, entrasse trazendo aquele objeto não identificado que ele fez questão de mostrar com toda a pompa e reverência, como se fosse o próprio tesouro da caverna de Ali Babá, a que ela fizera jus quando pronunciara a palavra mágica.
O objeto reluzia naquele tapete vermelho voador como querendo hipnotizar a vítima que estava ali pasma ante o que acabava de presenciar. Sem palavras ela ficou pensando que estava vivendo o início de um conto de fadas onde o final deveria ser feliz, mas que os caminhos pareciam tortuosos e difíceis de alcançar.
Àquela altura já começava a desconfiar que essa pompa toda só poderia significar que estava lidando com um mundo novo, que jamais pensara existir. Uma realidade muito distante da sua e, portanto, fora do alcance das suas limitadas e minguadas condições financeiras.
Enquanto isso, a vendedora apresentava as características e qualidades excepcionais do objeto não identificado. Esse é “O RELÒGIO”. O maravilhoso relógio que desafia os elementos: à prova de umidade. À prova de água. À prova de calor. À prova de vibração. À prova de frio. À prova de poeira. E toda a gênese da famosa campanha de anúncios de testemunhos que foi realizada no seu lançamento e que continua até hoje.
A marca Rolex foi a primeira também a introduzir um rotor "perpétuo" que literalmente dá corda ao relógio a cada movimento do pulso de usuário.
O primeiro em tudo: relógio à prova d’água, primeiro relógio de pulso; primeiro relógio de precisão absoluta; primeiro com cronômetro; primeiro relógio automático...Ufa!
À prova de bomba atômica, muito útil para quem prefere inverter o ditado: “vão-se os dedos, fiquem os anéis” no caso “vão-se os braços, fiquem os Rolex”.
Testado nas profundezas dos oceanos; nas altitudes, em terremotos, tsunamis; todo em ouro de tantos quilates. Quanto mais qualidades, mais ele se distanciava como se perdendo na linha tênue que separa o ideal do possível.
Ele foi submetido às piores condições possíveis e sobreviveu às profundezas do oceano com Jacques Piccard e à conquista do Everest, com Sir Eduard Hillary.
Ele manteve a sua precisão em temperaturas abaixo de zero no Ártico, no escaldante Saara e na ausência da gravidade do espaço.
Ele ignorou acidentes de aviões, naufrágios, acidentes de lanchas, quebrou a barreira do som e foi ejetado de um caça a jato a 22.000 pés
Certa vez foi derrubado, por acaso, em uma máquina de lavar roupas que o lavou em um ciclo escaldante, enxaguou, centrifugou e secou.
O pára-quedista australiano que derrubou-o a 800 pés da superfície.
O californiano cuja esposa acidentalmente assou o seu Oyster em um forno a 500 graus.
Em todos os casos, o Rolex recuperado estava funcionando perfeitamente.
Enquanto a vendedora falava e falava ela só pensava em achar uma saída honrosa para não passar atestado de pobre e desinformada.
Sabia que chegara ao fim da linha - Rolex nunca mais. Mas queria deixar a impressão que podia, mas que, racionalmente resolvera não comprar. Faltava-lhe apenas um bom motivo que justificasse tal saída estratégica – tipo “à francesa”.
E a solução lhe veio da própria vendedora que, impressionada com o fato de alguém se propor a dar um presente assim tão caro a um simples namorado, que nem noivo ou marido era, acabou por dar a deixa;
-Por que a senhora não escolhe uma outra marca mais barata e que não signifique um prejuízo tão grande em caso de rompimento da relação?
A vendedora então resolveu investir em outra linha e passou a falar maravilhas de outras marcas que ela talvez tivesse inferido cabiam perfeitamente no bolso da cliente.
Ela não tinha como saber ao certo, mas na verdade aquela primeira opção era mais de dez vezes o salário que a nossa garota ganhava com o contrato temporário do governo.
E a menina que podia ser ingênua mas não era boba nem nada, pegou a deixa e, após simular um tempo refletindo, como se estivesse ponderando, pensando, acabou de achar a saída honrosa que tanto ansiava e meio acatando a sugestão sensata da vendedora mencionou que ela tinha razão mas que ela precisava primeiro sondar junto ao amado a possibilidade dele aceitar uma outra marca.
Mas a essas alturas do desengano, não estava mais interessada em comprar nenhum relógio, pois qualquer outro de tão inferior valor não teria nenhum impacto positivo na sua relação e correria o risco até de não ser aceito ou então virar um daqueles presentes de coisas inúteis que o presenteado aceita por educação, mas nunca usa e deixa jogado num canto descuidadamente numa gaveta qualquer de um móvel espalhado pela casa ou escritório.
Ela também não queria correr o risco de ver a decepção nos olhos do amado, quando abrisse o pacote. Nem ganhar um sorriso amarelo... Mal disfarçando a decepção de quem pensava que ia ganhar o que tanto sonhava.
Se não é o que ele quer que não seja nenhum.
Foi argumentando nessa linha que ela pensou ter saído honrosamente dessa empreitada junto à vendedora que ainda a encheu de cartões com nome, endereço e número de telefone para o caso dela resolver efetuar alguma compra.
Já na calçada, a garota que entrara completamente leiga sobre relógios famosos e saiu quase doutora em Rolex, não pode deixar de rir da trapalhada.
E seguiu pela rua a procura do ponto de ônibus mais próximo, pensando no que a vendedora devia estar achando de toda essa situação e principalmente dela.
Da forma como estava vestida – calça jeans desbotada; camiseta básica de malha; bolsa feita de couro cru, chinelo de enfiar o pé, também de couro cru, com currulepo entre os dedos – ou ela a tomou por uma pobre pretensiosa ou por uma rica excêntrica. Com direito a uma terceira possibilidade: uma doida varrida.
Com qual dessas a vendedora ficou nunca ela pode saber. Tampouco se deu ao trabalho de perguntar. Seria humilhação demais. Melhor deixar para la, concluiu. E continuou a andar sorridente para a parada do ônibus.
Foi dessa forma sui generis que o Rolex entrou na vida de uma garota que amava os The Beatles e os The Rolling Stones.
Entrou para sair em seguida. Não esquentou lugar. Não disse a que veio. Nem quis ficar.
E o namorado ganhou de presente uma festa bonita e muito carinho.
Mas continuou lhe perguntando as horas quando tinha algum compromisso. E o melhor de tudo foi que ela pode continuar ditando a hora de encerrar a seção de namoro no sofá da casa dos pais toda noite, por um bom tempo, até que deu a hora dele ir definitivamente da sua vida!.Sem choro nem ranger de dentes. Mas também sem Rolex no pulso.
Hoje ela vê a popularização da marca, nas muitas imitações que aparecem por aí nos descuidados pulsos das pessoas e lembra a Aldeia Global de MacLuan, sente que estamos chegando lá.
Essas são as versões piratas que a globalização faz correr o mundo a partir dos produtos Made in China, Made in Taiwan, pirateados do Paraguai via Ponte da Amizade ou saídos dos fornos clandestinos de uma fabriqueta de fundo de quintal.
A tecnologia fez do mundo uma aldeia global. Só que essa aldeia continua tão ou mais desigual como no tempo em que havia cercas e muros separando cidadãos em Norte Sul / Leste Oeste; Ocidente – Oriente / ricos – pobres / pretos - brancos.
Embora alguns Rolex continuem marcando o tempo por todos os cantos da Terra nos braços refinados de Reis e Rainhas, altos executivos, empresários, artistas de cinema, outros milhares de similares também andam nos braços musculosos e cansados dos trabalhadores que pagam por uma imitação em suaves prestações mensais, numa generalização que é a marca maior desse tempo que estamos vivendo.
E foi desse forma, desajeitada e inusitada que o Rolex entrou na vida de uma garota ingênua e pura, recém chegada do interior para estudar na capital e foi através dele que ela pode vislumbrar um mundo de falso glamour, ostentação e frivolidades que ela nunca imaginara pudesse existir na vida real.
Achava que era só nos contos de fada, que ela tanto lera na infância e adolescência, que existisse um mundo assim de símbolos e ostentações, brasões modernos que diferenciam pessoas em classes sociais como castas no velho oriente.
O mundo de reis e rainhas como Sissi, Sissi a Imperatriz e Sissi e seu Destino, filmes que fizeram a cabeça da geração pós-guerra. Na ilusão de um mundo mágico povoado por príncipes e princesas, Cinderelas, Gatas Borralheiras que os livros e, mais recentemente as telas de cinema, trouxeram em tamanho real para o nosso mundinho limitado de uma cidade do interior do nordeste do Brasil, onde a tecnologia estava longe de atingir.
Choque entre o azul e o cacho de acácias....