DAR O NOME ( VII )
*- O almoço já está quase pronto. Hoje vou ser eu a dar-lhe a paparoca que a Rosa tem de sair...
- Tem de sair?
- Coisas dela, que também não estive para perguntar. E não me custa nada ajudar. Uma mão lava a outra.
- Que mão é que ela lhe lava a si?
- A mim? Nenhuma. Uma mão lava a outra era uma expressão.
- Se ela não lhe lava mão nenhuma. Se é só o Benito a lavar a mão à Rosa... “Uma mão lava a outra” não se aplica.
- Pois não, Sr. Amílcar...tem razão! Parece quase aquela coisa zen do som da mão a bater palmas...
- Não pára de me surpreender, amigo Benito...
- Então vamos lá, jantar de segunda-feira?
- Peru.
- Jantar de terça-feira?
- Empadão.
- Jantar de quarta-feira?
- Jantar de quarta-feira... Jantar de quarta-feira. Como irei adivinhar o que quererei jantar na quarta-feira?
- Tal como adivinhou o que queria jantar na terça e na segunda.
- Tens razão. Digo ao calhas. Pescada cozida.
- Pescada cozida não, por favor. Que quarta é dia de jantarmos juntos pois faço a noite. E tenho trauma com pescada cozida que a minha mãe me obrigava a comer à força e chegava até a vomitar pró prato e ela não estava com modas e obrigava-me a comer tudo na mesma...
- Alto! Assim não vou conseguir inventar ementas para jantar nenhum durante um mês.
- Certo, perdão. O que vai ser então para o jantar de quarta?
- Escolha você. Jantamos juntos e a mim tanto me faz.
- Filetes de pescada, pode ser?
- Pode.
- Jantar de quinta-feira?
- Omelete.
- Não pode comer ovos, Sr. Amílcar.
- Não posso porquê?
- Por causa do colesterol.
- Não recebo ordens de colesterol nenhum.
- Que graça. Quem deu as ordens foi o Dr. Andrade.
- Não recebo ordens de doutor nenhum.
- Seja. Omelete. Jantar de sexta-feira?
- Salmão.
- Jantar de Sábado?
- Ó homem invente você qualquer coisa. Tanto jantar, tanto jantar já estou enjoado!
- Está enjoado? Então e as ementas do pequeno-almoço?
- Que ementas do pequeno-almoço? Desde quando é que é preciso ter ementas para o pequeno-almoço? Eu como sempre a mesma coisa!
- Não, Sr. Amílcar, as sanduíches são sempre diferentes. Por vezes temos sanduíches de fiambre de peru, sanduíches de fiambre de porco, sem gordura, sanduíches de queijo fresco, sanduíches de requeijão, sanduíches de mortadela de frango...
- Irra tanta sanduíche! Não quero mais sanduíches. Estou farto de sanduíches. Quero tostas. Só tostas. Com o mesmo que vinha com as malditas sanduíches.
- Calma, calma, não vale a pena irritar-se só por causa de umas simples sanduíches...
- Só a palavra sanduíche já me enerva.
- Realmente é uma palavra irritante, o Sr. Amílcar repara em tudo. É cá uma cabecinha?
Mas porque razão não terminou o seu curso de medicina? Foi por causa do seu irmão?
- Foi por causa dele e do que ele me fez passar. E pensar. Deixei de querer ajudar as pessoas. As pessoas em geral. A Humanidade. Preferi dedicar-me à humanidade, com letra pequena. Humanidade daqueles que me eram queridos. Sabia lá eu se um dia estaria a salvar um homem de morrer de ataque cardíaco e ele depois virava um psicopata e matava os filhos todos...
- Mas não se pode pensar assim...
- Mas eu pensava.
- Está arrependido?
- De quê?
- Dessa resolução.
- Tomei a melhor resolução. Casar com a Matilde. Criar os nossos filhos. Dedicar-me aos negócios para gerar conforto financeiro.
- Teve mais um filho?
- Sim. Não. Quer dizer, tive um mas também não era meu filho biológico...
- Filho da senhora Matilde?
- Não.
- Não?
- Não.
- Como assim?
- Era o filho da Clara Catalão.
- Da Clara? Com quem?
- Não faço ideia.
- Sr. Amílcar, acha que o seu irmão...
- Não sei... Nunca lhe perguntei. Ele nunca o mencionou, nem quando lhe escrevi que estava grávida.
- Há uma coisa que não percebo. Ela não escrevia? Podia não falar mas escrever...
- Não. Não queria ou não sabia, não sei. Pedia-lhe que se sentasse, ela sentava-se. Colocava papel e caneta na sua frente e a Clara nem reagia. Permanecia naquele estado de semi inconsciência dócil...
- E depois?
- Depois o quê?
- Como terminou a sua história?
- Morreu.
- Como?
- De parto. Teve o menino. Pegou-o nos braços. Sorriu e morreu. Foi a única vez que a vimos sorrir.
- Que triste...
- Um derradeiro e breve momento de felicidade antes de partir...
- A criança nunca soube que não era seu filho?
- Nunca. Viveu feliz e contente como se fosse nosso desde sempre.
- Mais uma vez a ficção...
- Não foi preferível?
- Sem dúvida, Sr. Amílcar. Ficção e eufemismo. Muito melhor que realidade e...crueza da realidade.
- Nem mais. Vejo que captou bem o espírito do eufemismo.
- Nem quero outra coisa. Fiquei fã do eufemismo.
- Por falar em eufemismo não se esqueça que amanhã vamos discutir o solipsismo. E já agora o estruturalismo.
- O que têm a ver com o eufemismo?
- Nada. Lembrei-me agora.
- Por falar nisso, lembrei-me agora que temos de tratar hoje das suas mãos...
- Temos?
- Tenho eu, quero dizer. Tenho de lhe tratar das mãos e da cabeleira.
- Da cabeleira? Qual cabeleira, Benito?
- A sua, o seu cabelo. Eu costumo dizer cabeleira. A minha mãezinha dizia sempre cabeleira. Benito, tens uma cabeleira farta tão lida que até mete cobiça, dizia ela.
- Pois eu tenho cabelos. E poucos. E até decidir comprar uma, não tenho cabeleira, ouviu?
- Também o irrita a cabeleira? E “mãos” pode-se dizer?
- Pode, “mãos” pode. E “olhos” também. Não me quer tratar dos olhos, Benito?
- Dos olhos, Sr. Amílcar?
- Sim, Os meus olhos é que precisam de tratamento. O cabelo e as mãos não têm grandes maleitas. Já os olhos estão a ser devorados pelas cataratas...
- Mas eu não sou médico...
- Mas pelos vistos trata!
- Cuido, sr. Amílcar, eu cuido, não trato.
- Então cuide, Benito.
- Cuido pois! Para o Sr. Amílcar todos os cuidados são poucos.
- Os seus não, Benito, são muitos e bem-vindos.