O trágico fim do Padre Romano

Sentindo-se culpado ao ouvir aquela voz trêmula rogando-lhe o perdão, visivelmente desesperado pelo ato a que se permitira, aconselhou a menina que fosse, em paz, para a casa, afirmando, com a presunção de sua autoridade, que tudo acabaria bem. Não imaginava, mas seria este o derradeiro encontro de suas vidas.

Padre Romano - de aparência marcadamente jovial nos seus 45 anos, inteligente e, quando do início de seu sacerdócio, muito bem quisto pela maioria dos freqüentadores de sua igreja - fora transferido para São João dos Milagres havia apenas dois anos, imediatamente após ter completado o seu doutorado em Teologia, o que coincidiu com a morte, até certo ponto prematura, do Padre Lírio Santana, pois que este, além de uma vida comedida, pontuada de zelos com a saúde, jamais demonstrara qualquer sintoma de uma mínima doença. Morreu, entretanto, fulminado por violento infarto, consternando boa parte dos seus devotos paroquianos.

A chegada do novo sacerdote facilmente alegrou à comunidade religiosa, pois que durante quatro meses, em razão das renitentes burocracias dos documentos, a cidadezinha, que ostentava a alcunha de “Recanto das Graças” e onde pululavam fervorosas beatas, ficou sem o seu guia espiritual, sendo as missas ministradas tão somente aos domingos pelo velho Padre Rosélio, vindo do Porto das Almas, localidade distante cerca de 120 quilômetros e que possuía a fama de “Porto da Zona”, razão das prostitutas que roubavam a cena nas longas e agitadas madrugadas do seu decaído cais. Ferrenha rivalidade cotidianamente alimentava os sentimentos entre os filhos dessas pequenas localidades. Era como se o bem e o mal, em especial na imaginação dos seus residentes mais conservadores, travassem a sua inacabável disputa.

Somou-se àquela alegria a curiosidade especialmente despertada nas moças ditas de família, em cujos semblantes, antes carregados ou sem tanto estímulo nas celebrações, revelou-se uma terna contemplação, particularmente quando dos sermões. Dir-se-ia um inusitado interesse pela religião, uma vez que Padre Romano fugia, na sua aparência e no seu modo de vestir quando longe do púlpito, aos costumeiros parâmetros idealizados e sempre testemunhados por aquela gente diante de um religioso. E, logicamente, o prefeito e os seus apaniguados seguidores, percebendo tal empatia, buscavam, guiados pelos seus mesquinhos interesses, a aproximação com o jovem sacerdote, convidando-o para os mais diversos acontecimentos da cidade.

E foi justamente o envolvimento permissivo do Padre Romano com os chamados poderosos do lugar – herdando pendências quase sempre cobradas sem os devidos escrúpulos – que lhe custou os primeiros descréditos de boa parte de suas mais fiéis ovelhas e constrangimentos cada vez mais difíceis de suportar. Traçado estava o caminho para as desventuras religiosas!

O grande proprietário das redondezas, o Coronel Vidigal, rico fazendeiro de gado e praticamente senhor do pequeno comércio local, pois, além de sua padaria tradicional, era dono do único sortido mercadinho da cidade, em cujas prateleiras encontravam-se as mais raras e cobiçadas mercadorias, ausentes, é claro, nos outros estabelecimentos comerciais, muito mais pobres em suas ofertas. A alcunha de Coronel era em razão de sua inegável influência na política local, herdada de seu autoritário avô, tendo sob seu domínio os incompetentes edis, os quais, na verdade, dele recebiam a permissão até para o possível ingresso na carreira política. Praticava-se, dadas as circunstâncias, uma subserviente vereança naquela pequena cidade situada às bordas do litoral sergipano.

Apenas poucos meses chegado àquela pequena cidadela e após ministrar a missa dominical, convidado para um lauto almoço de família - convite este acompanhado de faustosas promessas de ajuda material e repassado, com a devida cobrança de atendimento, pelo velho Curió, antigo e rude serviçal do Coronel - Padre Romano acolheu imediatamente ao chamado, interessado nos possíveis dividendos, seja realmente pelos prometidos ganhos materiais para as sempre denominadas obras assistenciais de sua igreja, seja pelo prestígio político a ser alcançado, o que, na sua míope visão, poderia trazer-lhes futura proteção e bons rendimentos. Pecou pela ambição e, com o desenrolar atribulado dos fatos, pecaria pela sua desmedida presunção.

Diante do fato de ter realmente auferido considerável cabedal para tocar os melhoramentos na estrutura da já combalida igreja matriz e, da mesma forma, recebido novo mobiliário para a sua modesta casa paroquial, além das freqüentes garrafas de bons vinhos estrangeiros, Padre Romano, em pouco tempo, percebeu o quanto tais benefícios muito lhe custariam para livre exercer o seu sacerdócio. O pedido de troco viria a galope!

Aproximava-se o período das eleições locais e, é claro, surgiram as primeiras injunções nos atos religiosos do Padre Romano. Primeiramente, deram-se através de educadas sugestões, mas que logo viravam, quando não atendidas prontamente, rudes imposições, até ameaças. Sermões passaram a ser encomendados; proibições de temas, quando das missas e encontros sócio-religiosos, tornaram-se rotina; obrigações de visitas a povoados para, na companhia dos candidatos do Coronel, “abençoar” as promessas e recomendar o voto. Enfim, transformado em cabo eleitoral obrigatório, Padre Romano foi progressivamente perdendo o seu prestígio junto aos cidadãos que se sentiam livres das asas controladoras do velho politiqueiro local e daqueles que, na pureza de sua fé, se sentiam incomodados pelos discursos marcadamente contraditórios promanados do altar e quase sempre fugidios dos necessários e mais pertinentes temas sagrados.

Em meio a essas previstas implicações, das quais não conseguia se libertar, Padre Romano tentou, ainda que premido pelo medo, desvincular-se da influência perniciosa que havia equivocadamente permitido ao Coronel Vidigal, sobre todos os seus atos, litúrgicos ou não. Negando-se a batizar um novo afilhado do Coronel, alegando, para tal, leve indisposição de saúde, mandou recado, na última hora, ao autoritário senhor prevenindo-o de sua ausência ao festeiro batizado. Para complicar a sua corajosa negativa, como indigesta sugestão, indicou o velho e indesejado Padre Rosélio para substituí-lo no regalo político-religioso. A reação foi mais violenta do que esperavam até mesmo os amigos mais próximos do Coronel Vidigal.

Chegado o imprevisto recado, três solícitos capangas do raivoso político foram imediatamente convocados, bastante conhecidos pela truculência de seus atos na região, e logo aportaram na casa paroquial, onde, para infelicidade do religioso, ali se encontrava ternamente abraçado a uma jovem belíssima, de família conceituada na cidade, em trajes pouco recomendáveis. Este o encontro fatal, o grave flagrante que afinal desencadearia abusos, truculências e tão arbitrárias condenações.

Havia completado vinte anos e encantava pela sua esmerada educação e estonteante beleza. Era Janaína que lá estava e por quem o Padre Romano nutria afetuosos sentimentos severamente inaceitáveis para a sua profissão e cuja recíproca já era por todos igualmente percebida. Ainda não havia um mês que intrigantes boatos apontaram um relacionamento clandestino entre os dois, fomentados a partir das freqüentes fofocas patrocinadas pelas vigilantes e radicais beatas da igreja. O falatório fundamentava-se num possível encontro amoroso do casal proibido, que teria sido flagrado, com extrema má sorte, justamente pelas ditas “senhoras do terço” – verdadeiras zeladoras do templo e, sem muitos escrúpulos, também da vida dos fiéis – nos fundos da sacristia. Sacrilégio do jovem padre ou desmedida infâmia das linguarudas beatas? Ficara no ar e, sobretudo, nos papos de botequim, a grande dúvida!

Os capangas enviados, chefiados, é lógico, pelo velho Curió, arrancaram o Padre Romano, praticamente à força, dos braços de Janaína, a esta sinalizando com a delação imediata e os conseqüentes castigos para futuro breve, e obrigando, com abusiva agressividade, o aflito religioso a acompanhá-los sem reclamações. Cena constrangedora se cometida contra qualquer indivíduo, muito mais repreensível para com um sacerdote! Naquele momento, Padre Romano perceberia tanto o abismo em que possivelmente mergulharia a sua vida, quanto à realidade de não dispor de qualquer ente solidário para, com desmedida coragem, bem defendê-lo.

Assim, após as arrogantes e barulhentas reprimendas dos homens do Coronel, verbalizadas, sem qualquer preocupação, sob o silêncio natural do templo sagrado, Padre Romano foi retirado aos solavancos da sacristia, sem esboçar reação, praticamente arrastado por toda a igreja até a sua porta principal, onde a vizinhança bisbilhoteira e alguns transeuntes já se encontravam, pois que despertados pelo alarido descomunal. E em meio aos olhares curiosos e às provocações de ferinos acusadores, ele ainda percebeu, tão entristecido quão impotente, a angustiosa e denunciante fuga da jovem Janaína.

Vencido o percurso de meia légua entre a cidade e o sítio, local onde todos, muitos já ansiosos, esperavam pelo cumprimento da ordem estipulada, com escancarada grosseria, pelo Coronel Vidigal, chegaram, como se vindos de alguma disputa esportiva, banhados em suor, os orgulhosos serviçais e o padre desmoralizado. Como se de nada ainda soubesse, cinicamente risonho, o Velho Coronel, após rápidas combinações, convocou o apreensivo sacerdote para conceder o sagrado batismo a seu novo afilhado. Inesquecível para o Padre Romano aquele dia! Irrecuperável para a sua consciência de religioso a vergonha que ali passava completamente derrotado!

Realizado, a duras penas, o ato religioso do indômito batizado, Padre Romano foi levado pelo Coronel, sempre seguido pelos seus coniventes apaniguados, para a espaçosa varanda que rodeava os fundos da residência e ali, enquanto ouvia as mais vis ameaças e as mais degradantes chacotas, chegaram, sob perceptível desespero, dois jovens cheirando a carniça, salpicados de sangue recente, vindos das bandas do matadouro, onde trabalhavam. Traziam, sob incômodas gagueiras, a notícia aterradora do suicídio de Janaína.

O relato açodado causou imenso alvoroço entre todos os presentes, momento em que alguns falsos moralistas, conduzidos pelos altos níveis etílicos de seus organismos e pela certeza da impunidade de seus atos abomináveis, até intentaram contra a integridade física do sacerdote ali tão indefeso quão desmoralizado. São momentos peculiares, quando a hipocrisia, a vã maledicência, o cinismo e as demonstrações exacerbadas de um puritanismo na verdade inexistente, ganham injusta e absurda notoriedade.

Envergonhados, os familiares da jovem falecida não realizaram o enterramento na localidade. Partiram, em meio à confusão reinante, no anonimato da madrugada, para local não divulgado, suspendendo, ante a surpresa dos poucos amigos solidários, à fúnebre cerimônia. Ademais - como tanto desejavam os seus pais aflitos - carecia a infeliz alma das bênçãos extremas e reparadoras de um sacerdote naquele triste momento de sua precipitada partida. E certamente, mesmo que livre estivesse, não poderia o padre prevaricador ministrar o derradeiro sacramento.

Num breve espaço de tempo, apareceram, no local daquele conturbado festim, o inspetor e o escrivão, guarnecidos por dois desgrenhados soldados, que sequer portavam as suas fardas e exibiam as suas fisionomias carregadas, como se indigestas na expressão, pois que descansavam nas próprias celas da cadeia pública, após comilança exagerada, momento em que foram, para desagrado de suas relutantes preguiças, solicitados para proceder àquela especialíssima diligência.

Entregue aos ditos homens da lei como se fosse uma reles mercadoria ou contraditoriamente um ansiado troféu, e enxotado por todos os circunstantes, desde a fazenda até as ruas da cidade, Padre Romano, na sua mente conturbada, tomado por uma sensação medonha de abandono, lembrava do calvário de Jesus Cristo. Cusparadas, xingamentos os mais inaudíveis, ameaças virulentas, até alguns bofetões, com tudo isso, enfim, ele se debateu, respondendo com o silêncio dos culpados, os quais, invariavelmente de cabeça baixa, parecem consentir as odiosas acusações. Era a execração pública de um jovem sacerdote numa terra identificada como sagrada!

Na sua primeira noite na cadeia municipal - na verdade, um velho e exíguo sobrado que fedia a mofo -, excluindo-se os curiosos que demoradamente lá se postaram para bisbilhotar o seu padecimento, Padre Romano, além da pesarosa insônia, dispôs apenas da breve companhia de Mariana, irmã voluntária da Igreja Matriz, jovem moça sempre solícita nos serviços das missas e que secretariava as reuniões comunitárias, reconhecida pela sua mansuetude no trato com os paroquianos e que para lá se deslocou levando um acanhado lanche e um cobertor para o padre encarcerado. Levava, sobretudo, as suas palavras de conforto. Nobre gesto praticado, sem quaisquer receios, perante uma comunidade indelevelmente marcada por preconceitos e ávida por vingança!

Aguardava-se a chegada do juiz e do delegado de Simão Dias, cidade mais próspera e que acolhia judicialmente a paróquia de São João dos Milagres, enquanto que os alto-falantes espalhados pelos principais pontos da agitada cidadezinha vociferavam, a todo instante, imprecações ao jovem sacerdote. Invencionices e promessas de severa punição eram irresponsavelmente propagandeadas sem qualquer atestado de veracidade de seus graves conteúdos. Até um jornalista famoso da capital fora convidado, mediante faustoso rendimento, para dar a devida cobertura, sem tanto zelo profissional, ao fato ocorrido, obra do ardiloso e vingativo Coronel Vidigal, sempre a ditar regras e a castigar desafetos, o senhor das circuntâncias.

Já na segunda madrugada da sua ilegal detenção – pois nenhuma prova concreta lhe comprometia com a trágica morte da jovem Janaína – ouviu-se um baque seco, abrupto, na cela em que pretensamente dormia o religioso pecador: novo suicídio acontecia, em meio a tão exíguo espaço de tempo, numa pequena cidade onde geralmente eram as imagens cativantes das romarias e rezas, em especial dos milagres, que a noticiavam positivamente para as redondezas, seduzindo, a cada ano, novos visitantes.

Grande alarido tomou conta da praça, dos becos e vielas, ocasionando, inclusive, o fechamento das escolas, das repartições e até de alguns bares. A morte prematura e violenta do pároco a poucos verdadeiramente consternou, a alguns apenas suscitou reservadas lamentações, talvez tímidos arrependimentos pelas suas omissões e conivências ante ao calvário vivenciado pelo jovem religioso. Mas, necessário destacar, instigou incontrolavelmente à grande maioria dos residentes, razão da mórbida e reles curiosidade para se testemunhar o infortúnio de um inusitado suicida!

Assim o Padre Romano decidiu pelo seu derradeiro destino. Com o seu ato radical abortou a fúria vingativa de seus perseguidores e, talvez sem ter atinado, produziu necessárias reflexões e caríssimos sentimentos nas mentes e corações em muitas das ovelhas de seu infiel rebanho. E nada, nessa dramática história, resultou de qualquer possível milagre naquela localidade em que São João a todos pretensamente protegia.

R. Dantas

2009

betodantas
Enviado por betodantas em 27/04/2010
Código do texto: T2223415
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