DAR O NOME V

- Thierry, que se passou contigo?

- O Mundo! Meu irmão o Mundo caiu-me nos braços e eu não tenho forças para tanto. Quero que me ajudes. Não posso parar. Tenho de ir até ao fim desta história. Vou ser escritor. Vou escrever sobre o que se passou, sobre o que se está a passar. Eu vi os campos de extermínio da Polónia, Amílcar! E não posso calar aquelas caras sem nomes, aqueles olhos vazios. Alguém tem de ser a voz desta gente...

- Se queres escrever escreve, meu irmão. Que inquietação é essa? O que te falta ainda? Se viste, se tens fotos, se tens testemunhos...

- Não sabes o que dizes! Isto é apenas a ponta do Iceberg. A casca exterior da cebola. Quero ir ao fundo da coisa. Saber todos os “como”se os “porquê”. Quantos morreram? Quem eram? Porquê? Como? Sabes dizer-me? Sabes, Amílcar? Queres ver a minha testemunha mais importante? A que trouxe comigo?

- Quem? De quem falas?

- Não sei de quem falo. Aí está. Precisamente é disso que estou a falar. Esta mulher.

Estás a ver? Olha bem para ela. Não fala. Não diz nada. Não sei quem é. Foi encontrada nua, em Treblinka. Ninguém sabe explicar porque não tinha uniforme nem estrela. Se tivesse uma estrela saberíamos algo pela sua cor.

- O que queres que faça, Thierry? Onde entro eu neste filme?

- Parece um filme. Parece mesmo um filme. É exactamente assim que descrevem os campos as poucas testemunhas que falam. Necessitam de sair deles mesmo e ver tudo de fora, como se não lhes tivesse acontecido a eles. Como se estivessem a ver um filme de ficção. Por isso muitos não acreditam. Aqui entro eu! Vou denunciar e expor a realidade! Quero a verdade! Nua e crua!

- Calma, calma, meu irmão...

- Como pode alguém ter calma? O Mundo enlouqueceu. Caiu nos meus braços já louco. Queres que tenha calma!

- Quero. E também gostava muito de saber o que queres que eu faça para te ajudar.

- Vou voltar para a Polónia. Vou investigar tudo isto nem que tenha de ir até ao fim do mundo. Preciso que leves esta...esta pessoa para Portugal.

- E o que faço com esta senhora?

- Tomas conta dela, procuras um médico, formas-te em medicina e trata-la tu... sei lá! Alguém tem de fazer alguma coisa para ajuda-la.

- Tu estás demasiado ocupado...

- Sim! E além disso...

- O quê?

- Há outra coisa?

- Quem é que vais tirar detrás do biombo?

- Não é isso! Aqui não tenho mais ninguém...

- Desembucha!

- A Matilde.

- O que tem a Matilde?

- Eu prometi-lhe voltar rapidamente... dentro de meses...mas vou demorar mais tempo. Não sei quando volto, Amílcar. Ela está grávida.

- Deixaste a tua noiva grávida em Portugal e andas pela a Europa fora a tentar salvar o Mundo?

- Salvar? Salvar? Não existe salvação, redenção, esperança, nem coisa nenhuma! Eu quero é escrever a história! Esta mulher não tem língua! Não fala, não porque não saiba falar, não por ter perdido a memória mas porque alguém lhe cortou a língua! Haverá algo de mais justo do que querer colocar em palavras este horror que se abateu sobre a humanidade e a destruiu?

- Não sei. Se dizes que estamos para além da salvação a quem servirão essas palavras tão justas?

- Nem que seja para os extra-terrestres que encontraram os nossos despojos mortais!

- Vejo que tomaste uma resolução definitiva...

- Tomei uma resolução sim. Não espero que me compreendas. Peço-te que ajudes esta mulher. E a Matilde.

- E por ti? O que posso fazer por ti?

- Nada. Eu já não sou eu. Sou a mão que segura a caneta.

- Papel?

- Dá-me um abraço!

AnaMarques
Enviado por AnaMarques em 26/04/2010
Reeditado em 26/04/2010
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