A menina do coração verde

Quando o pássaro de aço de asas que não batem cuspiu de suas entranhas, no centro de Belém, qual o Jonas da baleia, aquela menina, emocionada e deslumbrada pela visão que acabara de ter do alto, não sabia bem o que iria encontrar pela frente. Viera no rastro do amor gestado na fertilidade dos sonhos, prenhe de signos e simbologias.

Queria o contato real com aquele sonho acalantado desde criança, que a virtualidade já lhe dera a conhecer e desejar.

Mergulhar nas doces águas barrentas.

Se emaranhar nos cabelos entrelaçados dos igarapés.

Navegar no balanço dos barcos pelos caminhos sinuosos e traiçoeiros das águas, vias naturais que ligam e separam lugares, coisas, pessoas, vidas que se cruzam na desorganização das embarcações precárias e perigosas.

Sentir o corpo em arrepio ao escutar os sussurros que emanam da imensidão da mata, criando o clima de mistério e magia que amedronta, atrai e fascina e de onde se originam as lendas que compõem o folclore da região.

Ser amada numa linda noite de lua por um moço bonito que saiu das águas e depois, por magia do encantamento, amamentar em seu seio o rebento cor de rosa.

Se deixar seduzir pelos ritmos e sons que estimulam o corpo e possuem a alma na primitiva sensualidade da dança.

Sucumbir ao acre e quente sabor do tacacá pelas esquinas da cidade.

Se entregar à sedução do garantido batuque que se alastra avermelhando as ruas da cidade.

Amar a suavidade azul que, em ondas toma e alaga a cidade em alegre disputa pela primazia no coração do povo do lugar.

Se atordoar com a profusão de cores e formas no Ver-o-Peso.

Sair por aí pulando numa perna só como o Saci.

Andar pra trás como o Curupira faz.

Mas alguma coisa não batia com o seu sonho. À realidade estava faltando cor. No sonho, que ela tantas vezes sonhara, cinzento só o céu nas tempestades. Barrentas só as águas dos rios nas enxurradas. Negro só no encontro das águas que não se misturam. Um belo espetáculo de se apreciar!

Mas o que lhe chamou atenção e chocou foi o contraste entre a natureza de um verde exuberante e a cinzenta realidade social, que se esconde nos “furos dos igarapés” ao longo dos rios, que vistos de cima apresentam estranhas formas como lagartos gigantes se arrastando pelo chão e que, entrelaçados como cobras, vão serpenteando por extensos caminhos em busca do mar.

E ela observando tudo de cima com olhos de emoção e espanto pensa em quantas vidas ali florescem a cada dia e vão engrossar um exército de pigmeus na escala da mata que nascem, circulam, trabalham, procriam e morrem numa luta inglória pela mera sobrevivência na estranha e gigantesca floresta.

Que sonhos alimentam as suas vidas? Que destino terão os seus pequeninos curumins naquela dimensão de gigantes? Quantos desejos insatisfeitos. Quantas lágrimas descem pelos rostos marcados indo engrossar o caudal do rio!

Quantas vidas benditas perdidas nas desditas da vida! Anonimamente vividas nunca vão deixar registros.

Quantos morrem sem ter passado pela vida. Sem existir para o mundo lá fora, para a estatística oficial.

Quantas barbáries são cometidas contra elas pela ganância cega e desenfreada de uns poucos que se sentem donos da terra que nunca suaram pra cultivar!

E de longe, o homem agigantado pelo poder do dinheiro, fere o verde e deixa à mostra as cicatrizes expostas da sua intervenção criminosa.

E a lei feita para proteger a natureza e os nativos em seus domínios ancestrais dorme nas gavetas dos burocratas ou são desvirtuadas na palavra fácil e enganosa de advogados diplomados em ludibriar, desvirtuar, distorcer o que está escrito.

E o sonho verde acalantado por toda uma vida sucumbe ante o contato com a dura realidade que vê da janela do pássaro de aço voltando de mais uma viagem.

Um rio caudaloso de dúvidas e incertezas é o conteúdo da sua bagagem.

O fascínio ainda persiste em sobreviver ao impacto do confronto com a dura realidade social que cada vez mais se agiganta dentro dela e interfere na luta entre a paixão e a razão que o seu coração não consegue vencer e a sua mente não está sendo capaz de equacionar e resolver.

No empate técnico que se estabeleceu então, resta o recurso de adiar o round final ao máximo esperando que algum fato novo venha dar o estímulo para estabelecer um vencedor.

Vendo lá embaixo as luzes sumirem na distancia, num misto de pesar e contentamento, ela lembra a canção:

“...estou voltando pra casa outra vez”.

Alena Ajira
Enviado por Alena Ajira em 26/04/2010
Código do texto: T2219880
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