Segredo

- Esse é o nosso segredo!

Era sim. Era o segredo que ela guardava para si como algo realmente precioso. Ele nem precisaria ter dito isso, mas o fez e tornou tudo ainda mais interessante, para não usar outras palavras que lhe colocariam a intimidade ainda mais visível e quase paupável, ouso dizer. Era muito reservada e se dava o direito de ter seus segredos. Já fazia parte dela. Mas um segredo sozinha, compartilhado com aquela pessoa que sabe sem perguntar, não era assim intrigante. Era apenas o reflexo de sua personalidade intimista. Não era jamais um algo de poético, um algo de fictício. Só uma intimidade. Apenas mais um parecer que o público desconhece. Um pensamento, um sentimento, uma banalidade. Não que fosse indiferente a esses segredos-comuns. Jamais agiria deliberadamente contra esses tão íntimos atores. Tinha mesmo algumas paranóias, medo de incutir nesses segredos um sentimento de inferioridade frente a esse novo. Loucura dela, talvez; mas, para manter-se sã, permitia-se algumas doidisses.

Não era esse apenas um outro dos seus mil íntimos contextos, claro. Não era um segredo sozinha. Era mais. Dessas estrelas que a gente não pára nunca mais de olhar e começa a sentir uma pontada de ciúme sem nem saber porquê. Ela fica lá em cima, piscando, e a gente já com dor de olhar; mas não pára, porque é nossa, só nossa. Ah! esses braços de egoísmo que vão nascendo de dentro da gente. Em braços de egoísmo mãos de ciúme: se alguém mais se apossar da estrela da gente? Ai, Jesus! Ela estremecia por dentro. E estremecia outra vez por ter estremecido: como poderia ser tão egoísta? Mas bom é ter segredos, né? Pensar que um estranho se apossaria da sua estrela... Chegava mesmo a doer, num desses lugares que a gente não encontra com a ponta do indicador. De qualquer forma, era externo o seu íntimo motivo. Já quase se acostumava que mais alguém o visse, já que não entenderia mesmo. Não! não, “entender” não é o verbo correto – sua grande falha com as palavras! Talvez fosse mais apropriado dizer que ninguém captaria, melhor: ninguém leria! Isso. Olhariam, mas nunca leriam seu astro piscante. Apenas ela tinha essa sede de ler-se.

Que discurso estranho. Por um momento esqueço que não era um segredo sozinha. Como pude? Espero que ela não tenha notado. Já me olha como se pudesse me ver narrando sua subjetividade. Corrijo-me: era tudo, ou todo, mais barbante. Não era assim história dela, que ela não divide. Era segredo externo, acompanhado. Era conto a duas mãos, a duas penas. Coisa assim de quatro paredes, de lugar-escondido, de olhar furtivo, de toque disfarçado e de piada pessoal que ninguém ia ler o real motivo. Era segredo-junto, segredo-casal, segredo-casado-clandestino. Uma conduta fora-da-lei sem punição. Um crime. Criminosa. Hm, era estranho e era bom ser criminosa, ela já começava a pensar. Mas, claro, dividir aquilo com o mundo, com o tempo, com a vida, já era muito diverso. Era criativo. Era egoísta – bom permitir-se o egoísmo. Mesmo assim dava seu jeito de menina levada pra o mundo saber do seu segredo sem lê-lo: Estrela. Porque saber sem ler é não saber que sabe, entende? Como quando você compra um livro e não olha as palavras, não folheia: não repara que ele está escondendo algo de você.

Desse jeito dela de guardar segredo, mostrando pra todos. Dessa forma que ela achou de viver suas entrelinhas sem ser criticada – já era tanto pela mãe –, só não queria ser incomodada. Não gostava das cobranças. Nem o tempo perdoava. Não queria que o tempo soubesse também, daí mostrava sem interesse, com displicência. Ainda não tinham aprendido a descobrir quando a falta de importância era real, quando disfarce. Tolos! Todos uns tolos, ela ria. Sempre sentados nos bancos: o mundo, o tempo, a vida... Sempre lá, julgando-se atentos ao menor movimento dos de vida obscura que passam apressados. Muito bobos querendo descobrir os segredos escondidos, procurando por debaixo das camisas, por dentro das mochilas, por detrás das sombras.

Ela era criança. Era viva, esperta. Tinha suas máscaras. E eram muitas! Incrível não repararem. Mas ela sabia fazer. Eram todos tão fáceis de contornar. Sentar-se ao lado e pretender copiar-lhes os atos já bastava. Estava tudo tão estampado nas suas maçãs e nos seus botões que não dava pra notar. Ela não era incomodada, portanto, com comentários-cobranças-invasões. Odiava sentir-se invadida. Aqueles mundos que se julgam Deus. Pretensiosos a saber tudo. Ela mal podia acreditar que já tinha sido criticada por não querer responder. Que absurdo, que absurdo. Mas era já tão experiente na arte de criar e disfarçar; dissimular, na verdade, convenhamos! Era diplomática. Não importam as certezas do tempo; ele não a pegava na esquina. Tão tolo que não reparava quando ela escorregava e ia escoando feito água ali pela rua de debochando da gravidade da lei que mandava escoar pra baixo e ela escoava pra cima. Era água boa de beber. Água boa de café.

Tinha lá já de volta seus 5 anos. Uma brincadeira. Dessas que nunca acabam e a gente deixa de ir fazer o dever de casa, de ir comer, de ir dormir. A gente deixa até de pensar. Ela só brincava. E sentia falta. Buscava sempre, porque ter segredo-junto era tão mais divertido! Era tão novo, tão bom e excitante. Não o ter segredo, mas o que ela guardava. Ia lá na sua prateleira abrir a caixa que parece um livro. Ficar olhando seu segredo-conjunto, feito conta bancária. Vontade de sentir o peso do segredo, o gosto do segredo e o calor. Se fosse mais uma de suas preciosas construções solitárias o que poderia querer? Dava adeus ao platonismo e espirrava: Nietzsche! Porque ela era conjugada num passado que quer dizer presente-visto-de-cima. Eu a vejo de cima, aprendi com ela. Ela o vê indo dentro de uma bola, quase toca uma música e caem folhas de outono. Ela tenta, mas não consegue desenhar, na mente, as palavras que pensa, não vê, só recebe as sensações. E, mais além, eu a observo e a delato aqui, porque sei o que ela pensa. Ela apenas ratifica:

- Esse é o nosso segredo.

Agora, lá vai ela ficar perto, por um motivo qualquer. Alimentar a certeza da aliança. Quase menina, quase boba, quase sorrindo. Vai lá porque é sempre algo bem mais do que eu pude falar. Sempre algo, bem dentro do amarelo dos olhos, que ainda não vi. Mas que ele nota, sem invadir. Vou-me que ele tomou meu lugar. Deixo-os sós, com seu segredo cheirando a café.

Rebeca Xavier
Enviado por Rebeca Xavier em 25/04/2010
Código do texto: T2218542
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.