O livro vivo da Dor
Oriunda da luz que mais tarde tornar-se-ia sombra de meus olhos outrora imaculados. Ledes-me a dor. A devasta de sentimento tomava-me para si, meu livro vivo de uma dor mais viva ainda. Olhos soturnos, vocábulos tentadoramente enfáticos (se pudesse falar), lábios de pintura negra, veste escarlate. É o meu demônio o que um dia fora meu deus. Desejar-te-ia vida visto que vida houvesse adentro de mim.
- Ouvi-la-ás ao fim agônico? Indispô-lo-emos da morte certa, desta não prece? – Olhando seus lábios tapados com um pedaço de farpela velha, sussurrei.
Todavia, amá-la-ei ceifadora de minh’alma e de minha dor. Olhai, ei-la em ti. Vergastou-me murmurejante ao meu inquieto instigar, de indagas sem respostas e respostas sem indagas, a palavra mata... Entoada ou silente. Melhor seria se não fosse?
Insigne perfume de pétalas colhidas uma a uma. O olhar elíptico em que em meio a uma nevasca de inverno e um dilúvio frio, impetrar-se-ia ainda mais frígido e álgido. Levou- me a felicidade e deixou-me a melancolia junta à nostalgia de amar, o que não é amável.
- Efêmero este tal de amor, não? Içou-se o tardeis orgulho corriqueiro de um sovina? -perguntei-lhe.
- Necessito talvez desta nostalgia. É esta desgraçada que vive em mim e me fazes escrever e mesmo sem ter um pedaço da alma perdido, a nostalgia faz-me crê que sim, que não tenho algo que me falta - dantes sorria em prazer ao ver-me sofrer - disse-lhe ao ouvido
Quem faz o mal e sente neste prazer, quando lhe é igualmente feito, não sabe o que fazer, perde-se e não mais se encontra o medo de ter medo, só este já lhe basta. Perde-se em um ato já cometido, o não ensaio de um desfecho, inúmeras e infinitas vezes, devias dantes de eu saber o que há de acontecer - refletia solitário.
- Não estranhe se a dor não lhe aparenta ser íntima, um dia garanto-lhe, será, ou pior, tu serás tão intimo d’ela quanto o amor do amar. Garanto-lhe que os cortes da pele hão de passar e em um dia distante de hoje tu irás agradecer-me por tê-la ensinado a não mais ferir os que andam feridos com suas cicatrizes a mostrar. “Nunca fira o que não se pode matar”, muito menos um coração puro que deveria ser amado - entoei-lhe e não fui correspondido.
Ainda defino como livro vivo este relato; as palavras aqui contidas foram transcritas com o sangue fresco de minha dor, ou minha amada. Encontrava-se esta amarrada em uma cadeira de madeira fragor e já fatigada, tua veste estava rasgada e com as admiráveis costas despidas; para cada palavra escrita, furava-lhe com a ponta de minha pluma e as gotas escorriam em sua pele branca que se perdiam entre o escarlate do sangue de seu lindo corpo ondulado. Quando falhava a pluma ou a palavra, era necessário de duas a três espetadas profundas e lentas para prosseguir. Degustava-me vê-la em seu lamento e em seu processo de purgação corpórea. Não conseguia ouvi-la com sua boca amarrada, apreciando muito seu silêncio e o meu falar, não lhe amarrei o ouvido; era assaz ouvir-me, senão, que graça haveria de haver?
O que ela me fez, não é mais importante, o que lhe fiz é o que de fato importa. Prendo-me em ser lacônico e de ensejo fidedigno em meus vocábulos.
As árvores da floresta central eram sempre mais fúnebres que um porão esquecido. O soar dos corvos e o tilintar dos galhos faziam do lugar algo não habitado e conseqüentemente jazido. Os poucos que ali passavam tinham a fama de mortos vivos. Decidi marcar um encontro ali, para que os demais não tivessem noção de meus próximos atos. De fato, esperava como sempre um atraso, contudo, não aconteceu. Sete horas ao toar de um pássaro desconhecido, que mais tarde morrera com um galho que caíra sobre sua nuca, achega-se minha amada. Teu semblante desconfiado veio de início indagar-me sobre este tal lugar em que nos encontrávamos; o pássaro então me ajudara – o galho caiu-se sobre ela, que desmaiou ao lado do falecido colibri. O destino fez-se amigo. Empenhava-me em levá-la para algo que se assemelhava a uma casa que ficara a alguns minutos dali. Finalmente cheguei e quase pensei que o tal destino havia matado-a. Amarrei-lhe em uma cadeira e quando acordara, osculei-a com vigor e antes que se pronuncia-se, calei-a com um pedaço de farpela imunda.
Despia as costas e comecei a escrever. A princípio, a oscilação incomodava-me, todavia a cada corte diminuíam-se os abalos e movimentos. O desfecho veio com o fenecimento das palavras e certamente deixei-lhe de companhia eterna, estas minhas páginas dependuradas a sua frente, pois ao sair daquela casa que a trancafiei com correntes nas portas e madeiras nas opalinas, não mais tornei. Os gritos alteavam-se abafados, fazendo com que o povo e sua crença no divino orassem, dias e noites para que a alma penada da floresta descansasse em paz. Estes fiéis, que culpam o diabo até pela unha gravada no dedo do pé mal lavado, acusam-no pela fúria da natureza, que reage apenas porque agem os seres “humanos” de forma desumana para com ela. Fazem preces inúteis. Vêem na crença a finalidade do rastejo e nela perdem o brio que de fato nunca tiveram.
De tudo ouvi dizer que as noites escuras ou claras eram perturbadas com os tais gritos abafados, vindos do centro da floresta. Empós sete dias não mais ouviram vozes a gritar. E o povo pôs-se a rezar novamente em agradecimento.