Neve York ou A neve que derreteu um coração empedernido.

Quando vi a minha amiga disfarçadamente enxugar, com as costas da mão, uma lágrima furtiva que teimava em rolar pelo seu rosto enquanto ela, visivelmente emocionada, nos relatava uma cena inesperada que vivenciara certa vez durante uma viagem a Nova York, tive a verdadeira dimensão do quanto o que acontecera havia sido marcante em sua vida.

Se ela que é tida e até se auto-define como uma pessoa prática e realista, que consegue ver as coisas com o distanciamento prudente e necessário a cada situação e até com uma certa frieza, capaz de conter as emoções em situações de conflito, principalmente em público, chegou às lágrimas é que realmente o fato continha uma alta carga emocional.

Sinal de que ela soube ver além das convenções sociais e descobrir naquela mulher prostrada em adoração e quase êxtase perante um fenômeno da natureza que até então, só havia visto através de fotografias ou filmes, o potencial que o ser humano tem de surpreender até mesmo a quem pensava já ter visto tudo e, portanto não acreditava que isso pudesse voltar a acontecer a essa altura da vida.

Enquanto algumas pessoas da família, incluindo aí a filha, tentavam disfarçar a vergonha pelo que qualificavam um mico imperdoável e sem tamanho, equivalente a passar atestado de primeira vez, de novo rico, de brega, cafona, ridículo, etc. face ao seu deslumbramento, minha amiga, alheia ao que isso estava significando para as outras pessoas, preferiu se fixar no que estava assistindo e procurar entender aquela emoção como um manifesto de um ser perante o inusitado, num confronto com as penúrias e limitações que haviam povoado o seu mundo de criança.

O choque produzido por esse confronto parece ter sido grande demais e a mulher não conseguiu conter a avalanche de sentimentos que foi desencadeada a partir daí. Foi quando a necessidade de externar o que sentia no peito e o que lhe estava passando pela cabeça falou mais alto e ela deixou que escapasse da garganta, num grito de desabafo, o que não queria calar e deu vazão a todas as emoções que, numa espécie de catarse, foram sendo despejadas como cascata a jorrar sem controle, aos borbotões pegando a todos de surpresa e despertando em cada um, de modo particular e no conjunto das pessoas que com ela faziam a mesma viagem, as mais variadas manifestações.

De forma que ela pisando pela primeira vez aquele branco dos seus mais acalantados sonhos, esquecendo por um momento onde estava, com quem estava e tudo que sempre abominara em termos de comportamento, ajoelhou-se diante daquela chuva diferente que caia do céu diretamente sobre a sua cabeça, e passou a aparar a neve com as mãos trêmulas e com a emoção de quem parece não acreditar no que vê e quer provar se é mesmo verdadeiro e não um mero truque da tecnologia usada em alguns lugares para dar ares de inverno americano aos Natais dos Shopping Center da vida.

E assim como ébria, uma criança diante do seu mais esperado brinquedo, ela apalpava a neve que caia querendo testar a sua textura; levava à boca querendo sentir o gosto; esfregava no rosto como procurando sentir a temperatura do poder daquele símbolo de um mundo de glamour tão inatingível que sempre admirara e que por estranhos desígnios se abria a sua frente de forma tão surpreendente.

Fez tudo isso em uma espécie de transe, mesclando choro com riso nervoso, enquanto ia falando coisas ininteligíveis e sem sequência lógica, mas com tanta verdade que dava pra entender que tinha a ver com tudo que ela vivera e que, como num filme ia passando pela sua cabeça.

Num misto de desespero e euforia estendia para os presentes as mãos de onde a neve derretendo escorria pelos dedos. A essas alturas a platéia já havia sido acrescida de muitos curiosos, que passando pela rua onde o ônibus havia parado, assistia admirada aquele espetáculo emocionante de uma pessoa em contato com o seu sonho real. E ela não se contendo mostrava a neve enquanto gritava entre os soluços entrecortados: Neve York...e repetia incessantemente Neve York, Neve York, Neve York, como querendo mostrar a todos que o seu ingresso nesse mundo de sonhos que representa o culto ao ter, Meca do consumismo, da competição acirrada e da busca incessante do sucesso como garantia de reconhecimento e de qualidade de vida, já era uma realidade.

Eu consegui! Parecia querer dizer. Eu consegui. Eu sou aquela que em criança tivera para calçar apenas dois pares de sapatos, roupas simples, muitas vezes fruto de doações de pessoas caridosas - sapatos rotos, meias furadas, roupas desbotadas! E olha onde estou agora aqui em Neve York, em plena capital do mundo!

Emocionada, minha amiga dizia não esquecer jamais daquele momento, da felicidade de ter presenciado a emoção promover o agigantamento de um ser, transformando a pequenez demonstrada durante anos de convívio social, visível nos pequenos gestos e também nas coisas de maior importância de uma vida pequena em atos e de mentalidade tacanha, na grandeza de uma mulher capaz de protagonizar de forma surpreendente um momento de tão grande beleza e profundidade.

De que profundezas o ser humano vai buscar coisas que muitas vezes nem ele mesmo sabe ser capaz, foi a pergunta que ficou no ar enquanto escutávamos a minha amiga relatar o ocorrido.

É assim como se existisse em cada ser uma mina de minérios e mistérios... Escondidas nas profundezas dessa terra desconhecida que somos nós seres humanos, muitas vezes passam uma vida sem ser descoberta. Quantas riquezas podem viver latentes e acabam morrendo sem serem exploradas!

Outras vezes por estranhos caminhos conseguem ser descobertas por entre labirintos que se cruzam, conjunção de fatores alheios a vontade do ser, afloram e deixam-se mostrar da forma mais inesperada! Aí os veios são explorados, riquezas mineradas. Preciosas pedras brutas lapidadas em jóias de rara beleza que alimentam a vaidade e enchem os olhos do mundo!

E mais do que uma simples história para lembrar em momentos de esquecer da vida com os amigos pelas mil e uma noites de farras e conversas foi tempo de dupla revelação.

Uma pessoa que tudo indicava iria permanecer bruta para sempre, pois o material extraído parecia sem qualidade, se descobre e se mostra ao mundo pronta para o trabalho de lapidação. Bendita Neve York!

A outra ao relembrar esse episódio com tanta emoção ddeixou cair os últimos resquícios de reserva que alguém pudessemos ter na forma de relacionamento que pareceia muitas vezes polido, educado, até um tanto frio e distante. Havia uma parede invisível que barrava uma maior aproximação que implicasse em gestos de demonstrações de afeto e carinho. Conhecíamos o seu carater, sabíamos até da sua amizade mas não havia condição de maior intimidade. A sua emoção daquele momento fez ruir por terra o escudo invisível que barrava uma aproximação maior e pudemos vislumbrar em toda a sua plenitude a sua verdadeira natureza interior que ela esconde para a maioria dos mortais e que como diz Caetano é um livro místico que somente a alguns a que tal graça se consente é dado lê-la.

Neve York. Neve York. A partir de agora pode-se reescrever a música que consagrou Frank Sinatra e pedir a ele que a imortalize novamente na sua nova versão e a envie diretamente para os corações que ainda são capazes de se emocionar e entender a emoção mesmo de quem parecia não ter capacidade para senti-la.

Neve York. Neve York. Marry Christmas! No mês de dezembro que se aproxima, em suas ruas quem dera alguém possa deixar jorrar emoções puras e verdadeiras e que não sejam só em conseqüência das entradas e saídas de suas lojas carregados de sacolas.

Nova York. Big Apple. Neve York.

Happy new year!

Alena Ajira
Enviado por Alena Ajira em 25/04/2010
Reeditado em 24/06/2015
Código do texto: T2217927
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