DAR O NOME IV
- Quem era essa mulher misteriosa, Sr. Amílcar?
- Boa questão, Benito? Uma questão que procurei responder uma grande parte da minha vida... Quem era essa mulher... Mas...Não ouviu um ruído estranho?
- Um ruído estranho? Onde? Que ruído estranho?
- Escute!
- Nada, não oiço nada.
- Parou. Quase jurava que ouvi algo lá em baixo.
- É o gato. Saltou para cima da mesa e partiu qualquer coisa.
- Traga cá esse patife que eu quero ajustar contas com ele.
- É para já, esse maldito só serve para atrapalhar a gente. Logo agora que a história estava a aquecer.
- Não perde pela demora, Benito.
- Pronto, menos um bule Vista Alegre lindíssimo, com oferta dos cacos pelo senhor Bigodes.
- Dê cá o bichano. Já estás a fazer ronrom...Espertalhão! Não te castigo, está descansado. A nossa amizade vale mais que mil bules.
- Amizade? Eu diria que isso é um caso de amor...
- Que sabe o Benito de amor?
- Pois...na verdade muito pouco. Só o que aprendi nos filmes, na televisão, nos livros, enfim... na ficção...
- Então provavelmente sabe tanto quanto eu, quanto todos nós.
- Sr. Amílcar, o senhor parece preferir a ficção à realidade, não é?
- Posto dessa maneira se pudesse escolher entre uma e outra escolheria sem dúvida a ficção. Desde que fosse eu o ficcionista...
- Porquê?
- Olhe porque a realidade é algo demasiado difícil de alcançar. Parece uma enguia a fugir das nossas mãos. Quanto mais a perseguimos mas ela nos escapa. Podemos andar obcecados toda a vida tentando descortinar um facto, uma história, um acontecimento e sem nunca vermos a tal realidade nua e crua... Como se nos faltassem capacidades sensoriais para a captar...
- Nesse caso os jornalistas teriam a vida muito dificultada...
- Ora agora é que o Benito colocou o dedo na ferida...
- Ai perdão, Sr. Amílcar, magoei-o? Foi sem querer!
- Não é isso, homem! A sua massagem nos pés está óptima. Era uma metáfora!
- Ah! Que susto. Não sou muito bom nas figuras de estilo. Já aquilo do eufemismo baralhou-me um pouco... Agora vem a metáfora...
- Sabes o que é “dourar a pílula”?
- Sei.
- Isso é o Eufemismo.
- Ah, pronto. Pode voltar à Clarinha?
- Clarinha! Também já lhe ganhou amizade?
- Pois se estamos há séculos de volta dela, não havia eu de lhe ganhar amizade...
- Literalmente...Quase!
- Como é que ela era?
- Era linda! A mulher mais bela que conheci na vida.
- Foi uma paixão sua?
- Não, Benito. Eu não sou um homem, e nunca fui um homem de paixões. Funciono com a razão. O que não me impede de ter afecto por certas pessoas. Poucas. Escolhidas a dedo. E pelos animais. Com esses não necessito de ser tão selectivo e cauteloso.
- Então quem era ela?
- “Quem era” é uma pergunta muito mais complicada... Vamos ver se consigo dar-te um vislumbre ténue da coisa...
- Acha que sou demasiado básico para entender?
- Que é isso, meu amigo? Então? Já vai entender. O problema não está no receptor mas na mensagem!
- Ainda bem, Sr. Amílcar.
- Voltando à história, eu fui ao encontro do meu irmão a Paris. Estava longe de imaginar o que ele tinha para me pedir. Lembro-me da nossa conversa como se fosse hoje. E já lá vão quase cinco décadas...